Abertura

“Asneiras”, “desleixo”, “abandono”. A gestão do Pinhal de Leiria continua debaixo de fogo

10 out 2024 08:36

Volvidos sete anos, estão a ser cometidos “erros graves” que explicam o “falhanço nas plantações” e representam “desperdício dos dinheiros públicos”, denuncia um relatório enviado ao ICNF, que também fala de uma “situação verdadeiramente absurda” em talhões com regeneração natural

asneiras-desleixo-abandono-a-gestao-do-pinhal-de-leiria-continua-debaixo-de-fogo
Mata Nacional de Leiria, Outubro de 2024
Ricardo Graça

Faltam só alguns dias para se completarem sete anos desde o grande incêndio de 2017 na Mata Nacional de Leiria quando Octávio Ferreira confirma, uma vez mais, numa visita ao terreno, o que considera serem “asneiras” inaceitáveis e incompreensíveis na recuperação do pinhal.

Ler também: “"Muito foi feito, mas muito está por fazer”. Câmara da Marinha Grande pede mais investimento no Pinhal de Leiria”

Ler também: “ICNF refuta críticas: recuperada 69% da área ardida no Pinhal de Leiria e investidos 6 milhões de euros”

Do “falhanço nas plantações” ao “desperdício dos dinheiros públicos”, da “situação verdadeiramente absurda e muito prejudicial” em vários talhões com regeneração natural ao “problema grave de invasoras”, a avaliação que faz é, quase sempre, negativa: “erros técnicos”, “desleixo”, “falta de conhecimento”, “abandono”. Está tudo num documento com texto e imagens que enviou em Março ao presidente do ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a que o JORNAL DE LEIRIA teve acesso.

O incêndio de 15 de Outubro de 2017 destruiu 86% da Mata Nacional de Leiria e, sete anos volvidos, a gestão do pinhal (responsabilidade do ICNF) continua debaixo de fogo. “Veja bem este matagal, olhe os regos aqui. Isto não se compreende, está tudo coberto”, assinala o engenheiro silvicultor aposentado desde 2018, que continua a residir na Marinha Grande e tem 40 anos de experiência a trabalhar em florestas do Estado, incluindo, durante décadas, o Pinhal de Leiria, como técnico e gestor.

“O que eu critico é ter-se plantado e depois ter-se abandonado, pura e simplesmente”, diz ao JORNAL DE LEIRIA, quando a conversa decorre junto a um ta lhão já intervencionado. Segundo Octávio Ferreira, existem na Mata Nacional de Leiria “plantações com três, quatro, cinco anos” em que “não [se] vê um único pinheiro”, o que se vê “é mato”.

No relatório que endereçou ao INCF há sete meses (e até agora sem resposta) aponta que quase todos os talhões plantados desde o inverno de 2017/2018 estão abandonados, ou seja, não houve retanchas (substituição de plantas mortas ou que não vingaram) nem acções de limpeza. Alguns pinheiros secaram e desapareceram, outros encontram-se sufocados por matos, que crescem mais rápido e lhes roubam luz, água e nutrientes.

O antigo quadro do Ministério da Agricultura acrescenta, ainda, que as plantações foram feitas em regos demasiado profundos e em alguns casos os pinheiros ficam soterrados devido à chuva e ao vento que actuam sobre as areias. A alternativa seria fresar faixas (desbastar).

“Péssimos resultados”

“Erros técnicos graves”, de que resultam “péssimos resultados”. Octávio Ferreira adianta que a taxa de mortalidade das plantações na Mata Nacional de Leiria “parece ser um pouco superior” ao normal e avisa que “não basta [ao ICNF] dizer já plantei área ardida” e, depois, “não ter lá plantas”.

“Inaceitável”, acredita, é, também, o que observa em determinadas zonas com regeneração natural (onde os pinheiros nasceram de sementes que ficaram no solo e resistiram ao fogo) e com que confronta o ICNF no mesmo documento: pinheiros jovens, “muitas vezes às dezenas de milhar por hectare”, no meio de matos, “a definhar” ou “já com difícil recuperação”; outros, “em grande competição”, afastados entre si apenas centímetros, porque não se procedeu ao corte dos exemplares considerados mais fracos e desnecessários; falta de adensamento nos talhões em que a regeneração é insuficiente; e faixas limpas de matos, mas estreitas, em que a largura entre as linhas de pinheiros não permite a entrada de tractores ou carros de bombeiros.

Pinhal de Leiria, Outubro de 2024 (Fotografias de Ricardo Graça)

Sobre o balanço que o ICNF apresenta, da intervenção na Mata Nacional de Leiria, Octávio Ferreira alerta: “Contabilizam a área intervencionada, não contabilizam a área que está recuperada”, que será “muitíssimo inferior”, estima. “Não sei se chega a metade”.

Invasoras fora de controlo

Há mais críticas. À cabeça, “um problema grave de invasoras”, provocado por acácias e, com expressão mais reduzida, erva-das-pampas. As acácias, “o que estão a fazer é cortá-las, a seguir rebentam, continuam cá”. Octávio Ferreira defende que seria mais adequado conter a propagação onde ocorrem manchas maiores e arrancá-las uma a uma nas zonas menos atingidas. “Uma dezenas de invasoras passados uns anos serão centenas e depois milhares”, realça. “Alguns talhões da Mata Nacional de Leiria apresentam acácias em vários hectares”.

O principal recado que o engenheiro residente na Marinha Grande envia ao ICNF, com o objectivo de estancar “asneiras que estão à vista de todos”, cabe num par de frases: “Suspendam-se por um ou dois anos as novas plantações, dê-se no ime diato prioridade ao tratamento das plantações já realizadas, limpem-se os matos, façam-se retanchas e adubações”. E, ao mesmo tempo, “aproveite-se para terminar o aproveitamento da regeneração natural”.

Em paralelo, Octávio Ferreira denuncia que “a rede divisional rectilínea da Mata Nacional de Leiria desapareceu em alguns locais, noutros encontra-se em ziguezague e invadida pela vegetação, situações que é preciso inverter”; sugere a beneficiação de estradas e caminhos que atravessam o pinhal e lamenta “o estado de abandono” a que estão votadas as árvores de interesse público da Mata Nacional de Leiria, como “o pinheiro bravo do talhão 271, com 207 anos”, e a falta de cuidado e preservação de locais históricos, como a fonte da Felícia, “desaparecida no matagal”.

“Ponham aqui na Marinha Grande um conjunto de técnicos, um serviço, com capacidade de decisão, com um orçamento próprio anual”, reclama, enquanto nota que, “neste momento”, o Pinhal de Leiria “está a ser gerido por Viseu”, de acordo com a orgânica do ICNF. “Continua a haver falta de conhecimento, desconhecem como é que isto no litoral deve funcionar”. Em suma, “o que está a falhar é [não] haver uma estrutura técnica aqui a funcionar. Puseram um departamento, na Marinha Grande, esse departamento é simbolizado por uma placa que está ali na parede. E mais nada”.

Outro modelo de gestão?

Ainda mais longe, vai o ex-presidente do Observatório Técnico Independente criado na Assembleia da República depois dos incêndios de 2017, para quem “a gestão” da Mata Nacional de Leiria “deveria ser partilhada” por outras entidades, além do ICNF, modelo que, assegura, “faz com que a mobilização de recursos seja bastante mais fácil” e “cria uma situação de muito maior equilíbrio entre as várias vertentes” do pinhal, incluindo a produção, o recreio, a cultura e a história. Experiências “com sucesso” já existem, argumenta Francisco Castro Rego. “Vale a pena utilizar parcerias e sobretudo a relação entre as entidades nacionais e as entidades locais, e a câmara municipal é, claramente, uma”, afirma. “Obrigaria a que a postura do ICNF fosse bastante diferente”, isto é, “menos autoritária” e “mais dialogante”.

Além das vantagens de um novo modelo de gestão da Mata Nacional de Leiria, que o Observatório Técnico Independente chegou a recomendar, Francisco Castro Rego relembra a importância da instalação, na Marinha Grande, do Museu da Floresta, formalmente criado em 1999, mas que continua sem sair do papel. “Tem havido , por parte do ICNF, uma postura de tomar decisões unilaterais, que me parecem ir completamente ao arrepio daquilo que poderia ser, pelo menos na minha cabeça, o Museu da Floresta”. E explica: “Deve ser um museu nacional” e “a câmara municipal tem de estar lá” mas “não deve estar sozinha”.

“Muito foi feito, mas muito está por fazer”. Câmara da Marinha Grande pede mais investimento no Pinhal de Leiria

Para o presidente da Câmara Municipal da Marinha Grande, fica clara “a necessidade de um maior investimento” do Estado no Pinhal de Leiria. Incluindo, na rede viária que continua por beneficiar, e, em concreto, no troço de 2,7 quilómetros que liga Pedreanes à estrada de São Pedro de Moel, para o qual o Município diz já ter elaborado o respectivo projecto. Mas não só.

O ICNF tem realizado acções para a recuperação da Mata”, começa por referir Aurélio Ferreira, em declarações, por escrito, ao JORNAL DE LEIRIA. Ao mesmo tempo, tem-se assistido “a ações de limpeza e gestão de combustível na Mata Nacional, por parte do seu legítimo proprietário”. No entanto, conclui, “ainda não é suficiente, sobretudo no pinhal que não ardeu. É preciso continuar e intensificar esse investimento, sob pena de voltarmos a ter novos focos de risco de incêndio florestal, como aconteceu em 2017”.

O autarca reitera “a necessidade de se fazer um maior investimento” e “não apenas na reflorestação”.

Sete anos após o incêndio, já observamos pinheiros, mas também outras espécies, sobretudo o eucalipto e as acácias que têm um crescimento muito mais rápido do que o pinheiro. Urge controlar o crescimento e proliferação destas invasoras”, aponta o presidente do Município.

Temos a consciência de que o Pinhal do Rei não se reergue num curto espaço de tempo, mas a sua recuperação torna-se central para a população do concelho. Muito foi feito, mas, também, muito ainda está por fazer. E, por isso, exigimos que a reflorestação conste da agenda de prioridades do Governo, nomeadamente das acções do ICNF, com quem sempre manifestámos disponibilidade para trabalhar em parceria”, realça.

Aurélio Ferreira adianta que tem a garantia do ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (a entidade responsável pela gestão da Mata Nacional de Leiria) de que os investimentos vão prosseguir em 2025 e que globalmente o plano já iniciado em 2018 abrange arborização, aproveitamento da regeneração natural, protecção da área não ardida, controlo de invasoras lenhosas, fitossanidade e rede viária.

Quanto ao Museu da Floresta, o autarca lembra que “em junho de 2023 e a pedido do Fundo Revive Natureza, a Câmara Municipal da Marinha Grande enviou o Plano Estratégico de Requalificação do Parque do Engenho”. E explica: “desde então, temos procurado negociar que o Parque do Engenho acolha duas valências: a componente de Museu Nacional da Floresta e uma componente turística para fixação de uma unidade hoteleira a explorar /concessionar pelo Fundo Revive Natureza”.

Temos consciência da importância que a Marinha Grande tem no contexto da floresta pública nacional e embora não sejamos os gestoresde 2/3 do nosso território” – conclui Aurélio Ferreira – “possuímos o sentido de dever público de tudo fazermos, no que estiver ao nosso alcance, para devolvermos o legado do Pinhal do Rei às gerações mais jovens, num claro compromisso de fazermos a mudança.

ICNF refuta críticas: recuperada 69% da área ardida no Pinhal de Leiria e investidos 6 milhões de euros

Nas zonas da Mata Nacional de Leiria rearborizadas depois do incêndio de 2017, “a taxa de mortalidade está dentro dos valores expectáveis, tendo em conta as condições edafoclimáticas do local”, assegura o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), a entidade responsável pela gestão do pinhal. “A taxa média de sobrevivência ronda os 75%”.

No que respeita a acções de retancha (substituição de plantas que morreram ou não vingaram), o organismo garante que “desde [o ano de] 2020 que se efectuam retanchas na Mata Nacional de Leiria, tendo sido efectuadas em cerca de 2.500 hectares”.

Por outro lado, “nas áreas onde a proliferação de invasoras lenhosas e a densidade de matos é elevada e podem pôr em causa o sucesso da arborização através da competição, têm sido realizados trabalhos de manutenção através de meios próprios do ICNF”, pode ler-se na mesma resposta enviada ao JORNAL DE LEIRIA.

Que percentagem da Mata Nacional de Leiria já se encontra intervencionada? Entre rearborização e aproveitamento da regeneração natural, 69% dos 9.475 hectares atingidos pelo incêndio considerados para recuperação, ou seja, o equivalente a 6.534 hectares, segundo dados partilhados com o JORNAL DE LEIRIA pelo ICNF. Para 2025, estão já previstas intervenções de plantação, aproveitamento de regeneração natural e outras intervenções em aproximadamente 900 hectares. Da área recuperada cerca de 20% foi efectuada através de aproveitamento de regeneração natural e 80% com recurso a arborizações.

Quanto investiu o Estado desde o incêndio na recuperação da Mata Nacional de Leiria? E quanto planeia investir? Até à data, foram investidos 6.123.410 euros, portanto, ligeiramente acima de 6 milhões de euros. Há a promessa de aumentar o montante global do investimento até 9 milhões de euros em 2025. Os projectos já executados contemplaram rearborização, renovação de zonas de lazer, reabilitação do ponto de vigia da Crastinha, beneficiação de estradas, estabilização de arribas e acções de defesa contra incêndios. Os investimentos em curso ou para o período até 2025 abrangem rearborização, aproveitamento de regeneração natural e controlo de invasoras, entre outros.

“A recuperação da Mata Nacional de Leiria é um processo dinâmico e contínuo, sendo que a sua recuperação cumpre o estabelecido no Plano de Gestão Florestal (PGF) da Mata Nacional de Leiria (2019 a 2038) em vigor”, nota o ICNF.

Para 2025, a área a recuperar está de acordo com o preconizado no Plano de Gestão Florestal em vigor, sem prejuízo da intervenção prevista ser adaptativa e condicionada às dinâmicas territoriais e necessidades de gestão”, acrescenta a entidade que tem a tutela do Pinhal de Leiria.

“A vegetação espontânea que ocorre nas áreas (re)arborizadas tem um papel fundamental na recuperação de solos, na retenção de humidade e no incremento da biodiversidade, importantes para o sucesso das jovens plantas instaladas”, é referido, ainda, na informação recebida pelo JORNAL DE LEIRIA.