Viver
Histórias de encantar e mitos de terror
Sabia que a Arca de Noé encalhou junto à vila da Batalha, na aldeia de Alcanadas? Que, nas noites de Inverno, à meia-noite, havia quem desafiasse, nas encruzilhas, o Diabo para um jogo do pau? São histórias que fazem parte da nossa identidade
As lendas, mitos e contos tradicionais são histórias transmitidas pela tradição de coisas muito duvidosas ou inverosímeis, firmemente alicerçadas na sabedoria popular e que, muitas vezes, marcam a identidade de um povo.
Combinam os factos reais e históricos com os irreais, produto da imaginação humana, deixando-se influenciar pelo espaço geográfico e tradição.
Com exemplos bem definidos em todos os países do mundo, as lendas fornecem explicações plausíveis e, até certo ponto, aceitáveis, para coisas que não encontram, na Ciência, um esclarecimento.
Muitas delas até podem ter um fundamento literário clássico. “A lenda da águia da Memória é uma apropriação popular do mito do rapto e Ganímedes pela águia que se transformou numa história cristã”, explica o investigador da Universidade de Coimbra, Saul António Gomes.
Na mitologia original grega, ao contrário da tradição popular, Ganímedes não era uma mulher mas um príncipe, por quem o maior dos deuses, Zeus, se apaixonou.
Um dia, quando, junto a Tróia, o jovem cuidava dos rebanhos do pai, Zeus, atordoado pela beleza do mortal, transformou-se em águia e raptou-o, possuindo-o em pleno voo.
“A apropriação dos mitos clássicos pela Igreja aconteceu muitas vezes ao longo da história”, adianta o historiador que exemplifica com o portal do Mosteiro da Batalha, datado de 1420-30, que tem representações de mitos gravados na sua pedra.
“É o caso da luta de Hércules contra Anteu”, diz Saul Gomes. Hércules descobriu que nunca conseguiria vencer Anteu atirando-o contra o chão, porque era da Terra que ele tirava a sua força.
E Anteu percebeu que não conseguia derrotar Hércules esmagando-lhe o crânio, como fazia com todos os que o desafiavam. Por fim, Hércules matou Anteu, levantando-o do chão, mantendo-o suspenso.
É por isso que o mito tem sido utilizado como fábula da força espiritual, mantida pela fé nas coisas terrenas. As alturas do mosteiros são ricas em mitos, histórias e seres fantásticos.
Além da antiguidade clássica, também a Bíblia e acontecimentos como o Dilúvio são fonte de lendas e histórias. É, aliás, esse evento que, para muitos naturais de Alcanadas, na Batalha, explica a origem do nome da localidade.
Quando as cataratas dos céus já tinham secado, Noé sentiu que as águas baixavam e perguntou à mulher: “a Arca nada?!”
“E foi daí que o nome ficou. É uma história... mas até há, em Alcanadas, uma pedra a indicar o local onde a Arca terá encalhado”, conta o etnólogo José Travaços Santos, que refere que, histórias como esta, servem para enriquecer a tradição e folclore.
“Todas elas mitos, lendas, contos infantis, ou historietas de encanto expressam a memória social das comunidades e também assumem uma componente pedagógica porque educam para comportamentos e valores éticos e sociais”, adianta Saul António Gomes.
Mouras encantadas
Na região, tal como em todo o País, há centenas de lendas, que dão conta de mouras encantadas, com origem na tradição moçarabe, da comunidade cristã que viviam sob a autoridade árabe.
Quase todas as localidade onde haja uma gruta têm uma “buraca da moura” ou “cova da moira”. Ali, afirma-se a pés juntos, moraram mouros, escondendo-se dos cristãos, nos idos da Reconquista ou, longe das vistas, mouras encantadas à espera ainda do regresso de um príncipe cristão.
Leiria também conta com uma dessa narrativas e a história poderia dar uma novela: No tempo em que os mouros dominavam, um cavaleiro cristão foi feito prisioneiro. Zaida, a filha do alcaide, apaixonou-se por ele, mas um dia, o cavaleiro foi libertado e pediu-lhe para fugirem juntos.
Zaida recusou. Quando os cristãos voltaram a atacar, o cavaleiro tombou ferido e a rapariga arrastou-o, através de uma passagem secreta, até uma sala escondida numa gruta, mas foi atingida por uma seta.
Mais tarde, os dois foram encontrados já sem vida. Hoje, em noites de luar, aparece junto à gruta uma donzela vestida de branco.
A cidade conta ainda com a lenda da sua conquista por D. Afonso Henriques que terá visto na presença de dois corvos junto às suas tropas, um bom agoiro.
Animados, os portugueses venceram a batalha e as aves foram imortalizadas no brasão de Leiria. Há ainda lendas miraculosas que falam de pedras de onde brota água e que estão ligadas ao culto da Rainha Santa Isabel, a tal que transformava pão em rosas.
Outra fala de tesouros escondidos na Sé-catedral de Leiria e relaciona as três portas do templo com três túneis que esconderiam ouro e prata, mas também a peste e a fome.
Há lendas sobre minas de água em que ninguém entra, por medo de serpentes gigantes devoradoras de homens, lobisomens, inspirados nas histórias de Ésopo, e até a que o pároco do Souto da Carpalhosa, Leiria, relatava em 1721, sobre uma antiga cidade romana que se afundou na Lagoa da Ervedeira.
Eventualmente, após ter escutado a narrativa da mítica Atlântida.
Já o mosteiro de Alcobaça tem, pelo menos, um exemplo de lenda hagiográfica.
Inscrita nos relevos do túmulo do rei D. Pedro I, fala de São Bartolomeu que, morto, escalpelizado e decapitado, pegou na pele e na cabeça às costas e andou “revivo” diante dos seus carrascos... e o mesmo terá acontecido a D. Pedro.
Os cronistas cistercienses do século XVII referem que o rei, depois de morto, voltou à vida por alguns momentos, apenas para se confessar ao abade do mosteiro e assim, pela admissão dos pecados, não se sujeitar ao Purgatório.
Se quiser conhecer mais lendas locais, pode consultar o Romanceiro Popular Português ou os Anais do Município de Leiria, de João Cabral, que referem várias, como a de arbustos que andavam sozinhos e mudavam de lugar.
Vampiros antes de Bram Stoker
e Twilight
Tempos modernos. Novos mitos e lendas urbanas
O imaginário das lendas não é apenas povoado por feitiçarias e bruxas. Algumas das mais curiosas narrativas que encontrámos datam já do século XX e início do século XXI.
São as chamadas lendas urbanas. Mesmo estas histórias ou historietas são, muitas vezes, pouco mais que a transcrição de receios antigos, xenofobia e actualizações de folclore antigo.
Em 2002, uma dessas histórias davam como certo o tráfico de órgãos envolvendo elementos da etnia chinesa e foram tão divulgadas através de email – as redes sociais ainda davam os primeiros passos com o Myspace e Hi5 – que o comando nacional da PSP teve mesmo de emitir um comunicado, esse sim verdadeiro, com o intuito de colocar água na fervura dos ódios e dos boatos.
E tudo por causa de lendas urbanas como a do “roubo de rins”, que o Arquivo Português de Lendas, o Lendarium, da Universidade do Algarve, transcreve.
“Dizem que, na Marinha Grande, havia uma loja de chineses e um casal entrou. Só que o homem já estava farto de lá estar e esperou no carro. Esperou, esperou, esperou e a não mulher aparecia. Então a porta foi fechada.
Ele bateu, entrou e disse: 'a minha mulher está aqui!'. Responderam-lhe e insistiram que não estava. Foi então que viu um alçapão.
Atravessando-o, encontrou a mulher já sem rins, numa banheira de gelo e os órgãos prontos a serem traficados.”
A origem, nestes casos, é sempre “alguém” que “ouviu” ou “a quem contaram”.
Mas a fonte, por mais improvável é sempre “segura”, muitas vezes, alguém que ouviu a polícia a falar do assunto.
Outra lenda curiosa a que o Lendarium faz referência é a do fantasma que apanha boleia à saída da discoteca. Normalmente, é uma rapariga que se instala no banco de trás do carro e, a determinado momento, aponta e diz: “foi nesta curva que eu morri”, desaparecendo no ar, de seguida.
Há ainda a lenda das agulhas infectadas nos cinemas e teatros, bebidas gaseificadas e águas engarrafadas com ácido.