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Nascentes. As histórias da aldeia desaguam no Museu do Comum, a abrir o festival

22 jun 2023 12:30

A colaboração entre artistas e moradores produziu, no Nascentes, um lugar mágico onde objectos, fotografias e memórias das Fontes potenciam a partilha de afectos. O festival começa na próxima quarta-feira

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Uma das novidades do Nascentes em 2023: o Museu do Comum
Ricardo Graça

Não é todos os dias que alguém entra num espaço de exposição e vê a vida (quase) inteira. O efeito é produzido pelo Museu do Comum, nas Fontes, concelho de Leiria.

Lucília Simões é uma das principais contribuidoras do projecto do festival Nascentes e durante a visita do JORNAL DE LEIRIA aponta, uma a uma, as fotografias que contam a história da família: “As vindimas dos meus pais e dos pais da Irene”; “a juventude do meu tempo no poço da nascente, a grota, não havia outros convívios, íamos para lá”; “uma festa na Senhora do Monte em que eu namorava o meu marido e ele tinha este carro”; “aqui foi no dia do meu casamento, na sacristia, o pessoal todo a dar os parabéns, na Senhora da Encarnação, em Leiria”; “as marchas infantis, onde entra a minha filha” – e até jogos da bola sobre o leito do rio: “Também estou para aí”.

Num antigo curral, está instalado o Museu do Comum. “Havia a junta dos bois, porcos, coelhos, cabras”, descreve Júlia Oliveira, filha da proprietária do barracão mais tarde transformado em garagem. Na exposição, há uma imagem da casa onde a mãe cresceu. “Era das casas mais ricas aqui das Fontes e talvez a única que teria casa de banho, porque pertenceu ao médico da aldeia”.

A iniciativa do festival Nascentes, desenvolvida em co-criação numa colaboração entre artistas e moradores, recua décadas e décadas e é um convite para preservar o passado que todos os habitantes das Fontes conhecem. Das vindimas às desfolhadas.

“Liberdade, não tínhamos. Íamos às festas da aldeia, mas sempre sob vigilância. Muitas vezes dei por a minha mãe e o meu pai a ver se me viam para me chamar para casa”, conta Júlia Oliveira. “Vivia-se da agricultura, poucas pessoas estudavam”. Banhos no rio, sem juízos de terceiros, eram “só para homens”, miúdos ou graúdos. “As mulheres iam lavar a roupa e depois lá poderiam mandar os seus mergulhos”. Mas “às escondidas e vestidinhas”.

Nas Fontes, com algumas das mais activas co-criadoras do Nascentes (Fotos de Ricardo Graça)

Lucília e Júlia, mas também Fernando, Idalina, Celeste e Sílvia, entre outros, nas Fontes, são decisivos, nos bastidores, para a existência do Museu do Comum. E, por outro lado, são protagonistas do projecto. Diante de uma fotografia, comenta-se: “É a companhia pé descalço”. As crianças iam a pé para a escola nas Portelas e para a catequese nas Cortes. “E íamos todas contentes”.

Noutro registo, Idalina redescobre a temporada em que aprendeu costura no Freixial, para onde também se deslocava a pé, vários quilómetros. “Eu ia à segunda-feira com um cesto à cabeça, com a roupa para vestir e com a comida para fazer lá durante a semana. E regressava à sexta-feira. Com 14 anos”.

Todas as imagens “têm uma história”, assinala-se. E as festas, claro, estão em evidência. O olhar é o detonador de recordações. “Queríamos trazer a banda Kroll, que levava 300 contos, e juntámo-nos todas para fazer o andor”.

“Afectos” e “histórias vivas”

Noutra parede, há polaroides, a revelar mais rostos da comunidade. E binóculos, relógios, lápis, um peluche. “Dissemos às pessoas: tragam um objecto que seja importante para vocês”, explica Gui Garrido, director artístico do festival Nascentes.

A recolha reuniu desde utensílios domésticos a ferramentas do meio rural, além das fotografias resgatadas nos álbuns de família.

A cabaça para o vinho, um maço, o sino de uma vaca, pedras que parecem recolhidas numa praia mas que são dali do sopé do monte, tudo cedências de Fernando Neves. É o que faz o Museu do Comum: “Dá poder”. Promove a “partilha de afectos, mais do que o objecto em si”, considera Gui Garrido. Estabelece um acervo colectivo e a partir do cenário das Fontes o que mais releva são as “histórias vivas” e o “subtexto”.

Gui Garrido segura uma das toalhas de rio que vão estar à venda durante o festival (Fotos de Ricardo Graça)

“Todas as pessoas tiveram a sua importância”, realça o director artístico do Nascentes.

Como exercício, o Museu do Comum “tem a sua contemporaneidade, mas respeitando as tradições” e o que se passa, actualmente, na povoação acantonada junto ao Lis.

As polaroides, por exemplo, são apresentadas numa estrutura de canas, a planta que também se encontra nas hortas da aldeia. “Internalizar um objecto num meio que é a fotografia, que também é imediata. E este tipo de fotografia revolucionou o mundo fotográfico quando apareceu. Começou a haver muito mais fotografias da intimidade”, diz Gui Garrido ao JORNAL DE LEIRIA.

A tentativa de “criar uma paisagem comum” é também o mote da instalação colocada ao centro da exposição, em que todos os visitantes do festival são desafiados a depositar um objecto.

“Borda-se pela vida”

Sílvia e Celeste ajudaram a compor as palavras que ocupam toda a parede do fundo e que recorda as horas em que grupos de mulheres se juntavam para bordar na sede do clube. “Uma terapia”. Lê-se: “Borda-se pelo convívio, pela companhia, pela amizade”. E há ainda o conjunto de auscultadores pendurados em harmonia que permitem escutar relatos contados na primeira pessoa e mergulhar nas paisagens sonoras – o sino electrónico, tractores, galos, o vento, gente a conversar, pássaros, a água a correr por debaixo da ponte.

Este ano com toalhas de rio, também produzidas com o contributo da comunidade, o Nascentes, organizado pela cooperativa Ccer Mais com a participação da população e com o apoio da colectividade das Fontes, inclui música ao vivo, petiscos, um piquenique, uma jantarada e actividades infanto-juvenis num programa de cinco dias, entre 28 de Junho a 2 de Julho.

Objectos, fotografias e memórias a potenciar a partilha de afectos (Fotos de Ricardo Graça)

No arranque do festival, pelas 19:30 horas da próxima quarta-feira, é conhecido o resultado da residência de criação do colectivo Ligados às Máquinas, com elementos da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, anunciado pela organização como “a primeira e provavelmente única orquestra de samples em cadeiras de rodas do mundo”.

O concerto assinala os 10 anos do projecto e inclui, além de repertório anterior, temas que os Ligados às Máquinas vão apresentar ao vivo, pela primeira vez, com estruturas que se baseiam em samples cedidos por mais de 30 artistas como, entre outros, a Orquestra e o Coro da Gulbenkian, Salvador Sobral, Samuel Úria, Joana Gama, Ana Deus, Rita Redshoes, Bruno Pernadas, Moullinex, Coro Ninfas do Lis, Joana Guerra, José Valente, Surma, Gala Drop, Lavoisier, Cabrita, First Breath After Coma, Vasco Silva e João Maneta.

No primeiro dia do festival Nascentes, está também em agenda a actuação de Carincur e João Pedro Fonseca com o Coro das Fontes, constituído por habitantes da aldeia, no contexto de outra residência artística, com foco na voz e na performance.