Abertura

"O bully precisa de ajuda. É uma criança que também está a sofrer"

21 out 2021 17:32

Agressão | Insultos e repetidas perseguições nos corredores da escola são sinais de que algo está mal. No recreio, nem tudo é bullying, mas é preciso estar atento aos sinais

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O bullying não acaba na escola. Segue as vítimas até casa e entra pela porta escancarada das redes sociais
Ilustração de Bruno Gaspar
Jacinto Silva Duro

Pedro Santos tinha acabado de fazer dez anos quando chegou ao ensino preparatório. Os primeiros dias passaram a correr, a tentar acomodar-se à nova rotina, com novas caras, novos colegas, novos professores e outro tipo de exigências.

Fez amizades, descobriu os cantos da nova escola na cidade e percebeu que havia grupos onde não era permitido a um miúdo franzino e habituado a outros ritmos e conversas entrar. Eram e ainda são as regras não escritas da escola.

Acabou por se juntar a crianças parecidas consigo, até ao dia em que um dos novos colegas começou a implicar com o “gordo” do grupo. Deu por si a fazer o mesmo e, sempre que havia tempo para um jogo de futebol, gritava em coro, que o “gordo”, previsivelmente, “vai à baliza”.

“Não me recordo do nome desse miúdo, apenas que levava calduços todos os dias e a todos os intervalos. O instigador era o nosso colega, com ar de mais velho, e nós alinhávamos”, lamenta. Mas as coisas mudaram, ainda o primeiro período não tinha chegado a Dezembro. Pedro descobriu que, embora não sendo “gordo”, era pequeno, tímido e “cheirava mal”.

O tal colega mimoseava-o com atenção. “O que se diz, quando todos começam a dizer que cheiramos mal e nos evitam? Como se contrapõe?”

Depois, começaram os calduços e as esperas, fora da escola, quando os auxiliares se aperceberam que Pedro estava a ser encurralado constantemente e começaram a estar de olho nele e no agressor.

“Ao fim de alguns meses, a tentar afastar-me dele, levei um murro bem assente num olho. Fez-me uma espera na rua e nem me apercebi. Compreendi nesse dia o significado de uma famosa frase popular. Até ‘vi estrelas’.

Com um olho negro, era impossível esconder o que se passava dos meus pais.” O director de turma foi envolvido e tentou-se acalmar os ânimos entre Pedro e o outro aluno.

Mas ao fim de uma semana, os calduços regressaram, tal como as esperas, “só para assustar”. Hoje, mais de 20 anos depois, acredita que essa perseguição não o afectou substancialmente, a não ser numa certa dificuldade em falar com figuras de autoridade.

“Foi um período mau que acabou quando transitei de ano. Ele desapareceu da escola e nunca mais tive problemas.”

Zaragatas e lutas entre jovens não são acontecimentos propriamente incomuns, embora, pedagogicamente, a palavra de ordem seja “tolerância”. A maior parte das vezes, são arrufos entre amigos desavindos, que passam com o tempo.

Outra coisa é o fenómeno conhecido em português por “rufianismo”, mas que se celebrizou com o termo inglês bullying. Segundo um relatório do Observatório Nacional do Bullying, publicado a propósito do Dia Mundial de Combate ao Bullying, que ontem se assinalou, é no recreio (60,4%) que se regista o maior número de casos de violência nas escolas.

O observatório criado em Janeiro de 2020 recebeu até

hoje 469 queixas, tendo registado 62 já este ano, um valor que o organismo acredita marcar uma descida nos casos de violência entre crianças e jovens. “Não são discussões pontuais. Existe uma acção reiterada e perpetuada no tempo com uma carga negativa profunda para a vítima”, explica António Filipe Chambel, docente e assistente social em contexto escolar, que, juntamente com a psicóloga clínica Alexandra Lázaro e com a coordenadora do Plano Inovador e Integrado de Combate ao Insucesso Escolar(PIICIE), Ana Oliveira, debateram o tema, no Encontro Stop Bullying, organizado pela Santa Casa da Misericórdia de Leiria, na semana passada.

Estatisticamente, a maioria dos jovens envolvidos em casos de bullying têm entre 12 e 14 anos e frequenta o 8.º ano e, com mais um ano lectivo iniciado há apenas um mês, as equipas pedagógicas deparam-se com situações que podem revestir a forma de “rufianismo”.

“Entre os sinais que podem ser indicadores de uma situação de bullying estão o absentismo escolar ou a existência de resultados escolares que não são ‘normais’ para a criança ou jovem, uma alteração de humor repentina sem justificação aparente, um ‘fechamento sobre si mesmo’, numa atitude de isolamento, desmotivação em relação às actividades diárias que anteriormente eram encaradas como motivadoras”, explica Chambel.

Agressão por motivos fúteis
O motivo para a agressão é, maioritariamente, banal. Tão fútil que a maioria de nós o desvalorizaria sem pensar muito no assunto, mas para os jovens é o fulcro da questão.

Segundo uma investigação realizada em 2017, pela Universidade do Minho, 25 a 42% dos alunos do Ensino Básico e Secundário já viram os colegas a serem vítimas de bullying, por causa do aspecto físico, da orientação sexual, do rendimento escolar, por serem gordos, serem tímidos, serem nerds [cromos], não usarem roupa desta ou daquela marca ou até por terem um sotaque.

"A sociedade vai permitindo este fenómeno, que se agudizou com o advento das redes sociais e, antes delas, com a internet", explica a também, psicóloga Ana Oliveira, coordenadora do PIICIE, que adianta que, na verdade, o bullying sempre existiu, porém, em tempos mais recentes, as explicações avançadas pelos jovens "são cada vez mais fúteis".

"Contudo, na base, está sempre o sentimento de poder e de subjugação do outro."

O bully tem noção de que o é?
"Alguns adolescentes sabem que têm estes comportamentos porque é a única forma de se destacarem. Têm alguma consciência de que são bullies, mas não conseguem parar, porque lutaram por aquele destaque e posição confortável no grupo", diz Ana Oliveira.

A psicóloga clínica Alexandra Lázaro complementa, adiantando que nem sempre o agressor compreende o sofrimento que está a provocar. "Uma das características do bully é a menor capacidade de estabelecer empatia, de se colocar no lugar do outro e de perceber que está a causar dano."

"O agressor culpabiliza o resto do mundo e o outro, por aquilo que está a acontecer. Entra num círculo vicioso. O bully também precisa de ajuda. É uma criança que também está a sofrer. Não pode ser olhada como apenas uma 'criança má', que tem de ser afastada, ao mesmo tempo que se dá toda a atenção à vítima", alerta Ana Oliveira.

“Há violência fortuita e banalização de actos de violência com base em critérios de negação dos objectivos de socialização.

Não existe socialização, mas a construção de seguidismo, numa ideia de séquito, que segue os maisin, sob pena de retaliações”, acrescenta António Filipe Chambel. Além do agressor e do agredido, existem ainda as "testemunhas".

Isto é, todos os envolvidos que, não tendo um papel directo, podem ou não fazer algo para impedir que a agressão continue.

"São os colegas que observam e que não sabem o que fazer, porque têm receio de represálias", enfatiza Ana Oliveira.

Existe a tendência de considerar que os agressores são oriundos de lares desfeitos ou onde existe um ambiente autoritário, mas nem sempre é o caso. Há situações onde os pais são apanhados de surpresa, quando chamados à escola são informados que o filho ou filha são agressores, quando nada o faria prever, pois sempre se esforçaram por criar lares felizes.

"Pode ter que ver com os estilos parentais. Ou demasiado autoritários ou permissivos, sem regras nem limites. Neste último caso, o ambiente demasiado permissivo, onde as regras e limites não são definidos, é factor de risco para este tipo de comportamentos que se traduzem em violência sobre os outros", conta Alexandra Lázaro.

E o que deve fazer um pai ou mãe quando sabe que o filho ou filha estão a ser vítimas de uma agressão?

Os especialistas recordam-se de casos onde os encarregados de educação entraram no recinto escolar para interpelar os agressores ou os outros pais.

“Um pai ou uma mãe quando sente que há uma situação de violência para com o seu filho deve recorrer à escola para perceber o que se passa e, para com ela, construir uma resposta à situação. Existem trâmites legais e de funcionamento das escolas.

Não nos podemos esquecer que nem só quem sofre de bullying é vítima, o agressor também pode estar a sê-lo. É um processo complexo e a acção irreflectida dos pais pode levar a uma situação mais exacerbada e criar ainda mais problemas.”

Quando a tempestade passa
O jovem que seja agressor ou vítima não está condenado a desenvolver uma psicopatologia grave.

"O bullying, por si só, não é predicativo de psicopatologia na idade adulta", explica Ana Oliveira.

A psicóloga ressalva, contudo, que a coexistência de outros factores pode ser um alerta para o desenvolvimento de perturbações de personalidade mais tarde.

O diagnóstico, não obstante, deve ser realizado atempadamente para se reagir, pelo que os professores, os auxiliares, os mediadores, os assistentes sociais, a família e todos os que entram em contacto com os jovens não devem desvalorizar situações.

Até porque o bullying não acaba na escola. Segue as vítimas até casa e entra pela porta escancarada das redes sociais. Muitas crianças são vítimas de agressões psicológicas, mesmo quando os pais crêem que elas estão seguras no lar.

Ana Lázaro sublinha que os encarregados de educação devem estar cientes das medidas de controlo parental.

“Há muitos pais que não estão bem informados sobre o assunto. Têm de saber quais os conteúdos vistos pelos filhos e limitar horas de utilização dentro de uma rotina diária. Isso é mais importante do que a oposição às tecnologias, que pode ser contraproducente e aumentar o desejo de lhes aceder."

E, sobretudo, os pais devem falar com os filhos sobre os riscos da exposição indesejada da vida pessoal às redes sociais.