Sociedade
“O perdão não é uma esponja que limpa culpas e nos dispensa de fazer a justiça” - D. António Marto
Bispo de Leiria-Fátima é uma pessoa frontal e cujo pensamento e atenções extravasam os limites da Diocese. Espectador atento do fenómeno da globalização e dos males que a alta finança trouxe a países como Portugal, cita o Papa e diz: “esta economia mata”
No dia em que o Papa abriu a Porta Santa do Jubileu da Misericórdia na Basílica de São João de Latrão, convidou à “alegria” do Natal para combater a “tristeza e a solidão”. São dois termos de que temos ouvido falar com cada vez maior insistência. Porquê?
Quem viveu o último quartel do século passado sempre pensou que o Mundo seria melhor no futuro. Foi uma fase de maior bem-estar e prosperidade, mas, infelizmente, fomos surpreendidos por acontecimentos que desdisseram esse optimismo. Esta cultura actual do Ocidente - na África e na Ásia, os povos, mesmo pobres, são muito mais alegres – é marcada por uma certa tristeza e solidão que deriva, em primeiro lugar, do espectáculo da guerra, da violência e da corrupção, que nos entra em casa pela televisão. Uma das causas disto é sermos vítimas da cultura do descartável… Entre nós, há aqueles que são considerados um peso, um fardo, porque não são produtivos e dos quais não se tira proveito. São os idosos, os desempregados, os sem-abrigo… são pessoas que sentem muita tristeza e uma solidão particularmente forte, até física, e uma solidão existencial.
Mais interna.
Sim. Mais interior. A solidão de quem, perante este cenário, não encontra uma perspectiva de esperança e perde a confiança na vida e na bondade da vida. O mundo precisa de um suplemento de esperança e alegria. Descartar as pessoas menos afortunadas e empurrá-las para as franjas da sociedade é renunciar à mensagem de Cristo, que sempre procurou a companhia dos mais desfavorecidos. É por isso que o Papa Francisco, que fala muito por gestos, onde quer que vá tem sempre um encontro com os mais desfavorecidos. Por exemplo, as refeições não são com entidades, mas com pessoas que estão doentes, encarceradas… São gestos proféticos e evangélicos que servem para sacudir as consciências. Quando Cristo o fazia, as pessoas escandalizavam- se, hoje, achamos que é “bonito e que é bom para o Papa”... mas que não é para nós.
Estamos perante um cenário de distopia, neste Mundo onde as crises mundiais são fomentadas pela ausência de valores, pela finança e onde o dinheiro manda mais do que a auto-determinação e o voto dos cidadãos?
Há dois factores que caracterizam este momento: a globalização, que se estende a todos os campos e, por conseguinte, ao económico-financeiro e as novas tecnologias. Assistimos ao predomínio do capitalismo financeiro, especulativo, bolsista, virtual, sem ética nem valores e sem rosto… não temos a quem pedir contas. A finalidade é o lucro imediato e a qualquer custo. Basta ver que, da noite para o dia, com um clique, se pode mudar a paisagem económico-financeira, arruinando a vida de muita gente, e que os próprios países não têm qualquer possibilidade de intervenção. Outro aspecto que determina isto é a mudança de época. Não vivemos apenas uma época de mudanças, mas há uma mudança de época e de cultura. Está a nascer uma cultura nova, com contornos que ainda não conhecemos bem, nem onde vamos parar. Isso abala a segurança e os fundamentos da vida, traz incerteza e leva a um individualismo exagerado. Ao salve-se quem puder e a dizer: “que me importa? Que me importa dos outros? Se eles são descartáveis, o que me importa é o meu bem-estar.” É o que conta nesta distopia de que fala. Fala-se muito num conjunto de condições socioambientais para uma vida digna, num ambiente digno, mas é preciso notar que não existe uma verdadeira qualidade de vida se não existir uma vida espiritual de qualidade. Se não existirem valores, ideais, convicções e amor ao próximo, que são bússola para orientar os povos.
A pobreza espiritual e de valores poderá estar na base dos fenómenos de extrema-direita, xenofobia e perseguição religiosa a que temos assistido pelo Mundo?
Pode, mas não apenas a pobreza espiritual. Também a cultural pode ser a origem desses fenómenos. O terrorismo é uma guerra que assumiu agora essa forma. Deixou os espaços dos exércitos e o espaços aéreos, para ir para a rua. Para o meio de nós, para o meio dos inocentes. Isso mete medo e é fruto de um fanatismo religioso. O terrorismo não se combate só com a guerra. É preciso fomentar, mais do que nunca, o diálogo inter-religioso, para nos abrirmos uns aos outros, para nos sentirmos próximos e irmãos. Se não houver paz entre as religiões, não haver paz no Mundo. É preciso trabalhar na integração dos que são diferentes de nós e estão na Europa. Muitos destes terroristas, como vimos há dias, nasceram na França e na Bélgica. Não tiveram um ambiente de integração nos países onde vivem para uma cidadania pleesquecena. Muitas vezes, estão sem trabalho… imaginem o que é viver sem trabalho numa cultura diferente, agredidos na nossa identidade cultural e religiosa. Isso leva à revolta. É preciso uma educação das novas gerações para a tolerância e, acima de tudo, para uma convivência pacífica. A tolerância é o denominador mínimo que nos leva ao diálogo, ao encontro e às causas comuns que nos unem.
Não deixa de ser curioso que as três principais religiões monoteístas do Mundo amem o mesmo Deus, tenham fundamentos semelhantes e não se entendam.
Neste momento, não há guerras confessionais, mas os cristãos, no Médio Oriente e em territórios árabes, estão a ser perseguidos. É verdade que há fanatismo religioso, mas há também interesses geopolíticos e económicos a incentivar esta violência. Os atentados de Paris, no mês passado, foram também um sinal da intolerância religiosa que se vive na actualidade.
Como podemos não nos deixar cair na tentação de responder com intolerância à intolerância e esquecer o perdão da mensagem de Cristo?
Pelo diálogo inter-religioso, integração na nossa cultura e educação das jovens gerações para a convivência pacífica. A nível político, é preciso estender pontes de diálogo e entendimento, sobretudo unido-nos em causas comuns. Por outro lado, temos o perdão, que nos liberta do ódio, do rancor e da vingança, mas não é contrário à justiça. O perdão não é uma esponja que limpa culpas e nos dispensa de fazer justiça. Liberta-nos do ódio, do rancor e da vingança, impedindonos de cair numa espiral de violência e leva-nos a procurar caminhos de reconciliação e de paz. É uma missão difícil. Tem uma dimensão pessoal, inter- pessoal, mas também cultural e até política. Atenção que o perdão não significa perder a nossa identidade. Podemos afirmar a nossa identidade no respeito e na aceitação recíprocas, mas não podemos pactuar com a violência e o ódio.
A violência da sexta-feira 13 de Novembro está a servir de legitimação para o quase esquecimento dos milhares de refugiados que esperam, na neve, à porta da Europa?
Esses atentados provocaram medo e insegurança, que se notou nas eleições francesas, com as pessoas a procurarem segurança nos extremismos, mas não nos podemos esquecer destas pessoas, que, na sua maioria, foge à guerra, à miséria e à fome. Por um lado, é um problema europeu que pede um consenso entre os vários países da Europa, mas é também um problema para o resto do Mundo, porque também tem origem em factores externos que não são confessionais. Tem de haver ajuda do resto do Mundo, das Nações Unidas, de organizações da sociedade civil e da Igreja, que tem uma rede muito grande para ajudar neste problema, em colaboração com os Estados. Poderemos tentar ajudar no problema a jusante, mas ele tem de ser resolvido a montante, nos países de origem, criando condições de paz e desenvolvimento, para criar condições condignas de vida. Esse é o grande desafio. A solução deste problema fará com que os refugiados não saiam de suas casas e que muitos possam regressar.
O que pensa da atitude das pessoas que dizem que devemos primeiro ajudar os nossos sem-abrigo e desfavorecidos, antes de ajudarmos os migrantes?
Uma coisa impede a outra? Claro que não. Tratamos dos nossos e daqueles que, aflitos, nos batem à porta. A Alemanha deu um exemplo impensável. Vai receber entre 800 mil e um milhão de refugiados. É um grande exemplo.
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