Viver
Palavra de Honra | Detesto o homicídio qualificado da linguagem escrita e falada
Sara de Oliveira, redatora independente a retalho
- Já não há paciência … (se é que havia) para arte com nome de arte. A arte contemporânea quotidiana, que é a de agora e não a de outrora, acha-se muito evoluída e inovadora - acho mal. Fotos de comida? Arte. Fotos de gatos persas? Arte. Fotos de autocolantes de marcas de skate a forrar um poste aleatório? Street art. Se não me fiz entender, arte à parte, foi sem querer.
- Detesto… o homicídio qualificado da linguagem escrita e falada, designadamente ao nível da construção frásica. Exemplo português: P: Então *inserir nome de indivíduo/a/e*, como vai isso? R: Vamos-se andando.
É um detestar antiparasitário, por motivos idênticos aos de cima - não há paciência.
- A ideia… é um fio condutor, se ligado ao devido motor. Há muitas ideias de merda a sacar piões por aí, não se enganem. Eu vou tendo várias, mas não conduzo. Quem é que nunca teve a infeliz ideia de dizer que teve uma ideia em voz alta?
- Questiono-me se… a Adília Lopes tem, por norma, os cacarecos lá de casa simetricamente empilhados dentro de mobília provinda de feiras de velharias, ou se é tudo à balda, com gatos a urinar por cima, Nossa-Senhoras que mudam de cor com o tempo tombadas por entre as porcelanas, e napperons tingidos. Em todo o caso, não se questiona se a Adília é a Maior.
- Adoro… a especificidade do som residual das fitas de cassete. O rebobinar também tem muito que se lhe diga, mas é no resíduo que está o ganho.
- Lembro-me tantas vezes… de coisas que tenho para fazer desde o início deste ano e ainda não fiz. Mas na mesma medida em que me lembro de, quando era miúda, não conseguir dormir em condições durante um ano por culpa do Aniki Bobó. Na altura não percebi se um garoto da minha idade morria mesmo na linha de comboio, ou se estava só tudo muito mal contado em termos de argumento e direcção de fotografia. Lembro-me com mais frequência ainda de ter visto o filme demasiado cedo. Hoje em dia, já sei quem é o passarinho totó.
- Desejo secretamente… que um caça-talentos descubra o meu potencial vocal e me catapulte para o estrelato, evitando assim que eu pondere durante anos a fio inscrever-me no The Voice. Não seria para fazer a vontade à minha avó, seria mais para agilizar o processo. P.S.- este tópico também se pode categorizar como arte, se fizerdes questão.
- Tenho saudades… de quem me fez aprender que a saudade que fica é o que me reconstrói, sempre que preciso.
- O medo que tive... já não tenho, porque serviu para deixar de o ter.
- Sinto vergonha alheia… de pessoas que me tiram o protagonismo do trocadilho “alheira” neste contexto. É um mal de que padeço mas não me desfaço. Funciona quase como a desgraça emocional de um poeta - se me é roubada, fico em quebra de produtividade.
- O futuro… é incerto, como a breve viagem pelo túnel de São Martinho do Porto à noite. Tanto se pode ir a correr para ver mais depressa o que acontece à saída, assim à desgarrada, como ser-se perspicaz o suficiente para acender uma lanterna e fazer a passagem descansadinho. A panorâmica depende da velocidade.
- Se eu encontrar… fundamento para o fundo das questões, agarro na minha tralha toda e atiro-a lá para dentro. Ou para baixo, conforme a profundidade.
- Prometo… que não morro antes de ir a Florença outra vez. Só para ver se aquilo é mesmo tudo verdade ou se é só fogo de vista. Em italiano, vista alegre.
- Tenho orgulho… Nos poetas d’Orpheu. É do que melhor se pariu neste país.