Sociedade

Paulo Moura: “Os fundamentalistas, extremistas e muito conservadores, não pegavam em armas para defender o Islão violento”

2 mar 2017 00:00

Jornalista e autor do livro 'Depois do Fim' foi repórter de guerra e esteve em Leiria para falar do papel do islamismo, como substituto do comunismo e do modo como esta religião tem sido usada para fins violentos

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Jacinto Silva Duro

No seu mais recente livro, Depois do Fim - Crónicas dos primeiros 25 anos depois da guerra de civilizações, faz uma alusão a dois conceitos geopolíticos no título e subtítulo. O fim de um mundo e o que se lhe segue.
"Depois do fim" refere-se à Teoria do fim da história, que é referida nos livros de Francis Fukuyama e Samuel Huntington. Um fala do fim da história e o outro do conflito de civilizações, e foram publicados na mesma época. Referem a transição que ocorreu após a Queda do Muro de Berlim. A Teoria do fim da história, que tem raízes em Hegel, afirma que a história sofre uma evolução, de tese de antítese e de síntese, até chegar a um final onde não haveria mais motivos para conflito e será o fim de toda a motivação para uma evolução e... a história acaba ou entramos, pelo menos, num período mais estagnado. Ora, diz-se que, depois da Queda do Muro de Berlim e do Bloco Soviético, esse momento aconteceu. Acabou a Guerra Fria, em 1989, e, portanto, é o “fim da história”, porque não haverá mais motivo para guerras. Na época, considerava-se que todos os conflitos que existiam no mundo tinha por detrás os E.U.A. e a U.R.S.S., as duas super-potências, que os alimentavam directa ou indirectamente.

Mas não foi o que aconteceu.
Ao contrário do que se previa, não iniciámos um mundo de paz, sem conflitos. Pelo contrário. Começaram novos conflitos e novos protagonistas. No meu livro, identifico, como grandes motivos, a saída de cena do comunismo e a entrada do islamismo radical como motivo de instabilidade. Se analisarmos, todos os grandes conflitos que aconteceram desde 1989, o islamismo radical e jihadismo estão na sua base. Mesmo eventos que começam sem ter qualquer ligação com isto, acabam por ser manipulados e dominados por essa força fundamentalista. O subtítulo, Crónicas dos primeiros 25 anos depois da guerra de civilizações, deixa entender que isto ainda mal começou. Não há uma Guerra Fria, mas uma "guerra de civilizações". Embora ninguém o diga abertamente, a noção é que estamos no meio de um conflito entre o Ocidente – judaico-cristão - e o mundo muçulmano. Este livro, é uma narrativa dos primeiros 25 anos dessa história e, nele, explico que não acredito em guerra alguma de civilizações. Em primeiro lugar, o conceito de civilização é discutível e a civilização ocidental tem muito de cristão, judaico, muçulmano e de outras culturas.

Mas conflitos têm sido feitos em nome dessa "guerra"...
É uma ficção criada, nestes 25 anos, para os justificar. Ou é em nome do Islão ou dos valores ocidentais contra o "perigo do Islão". Decidi publicar este livro, porque, um dia, olhei os meus caderninhos, onde tomo notas, e, em todos esses apontamentos dos trabalhos internacionais, constatei que há uma unidade entre vários destes assuntos. Afeganistão, Iraque... Primavera Árabe, Egipto, depois Líbia... As coisas pareciam não ter uma ligação entre si. Pareciam aleatórias e caóticas e só,a posteriori, vi a ligação entre elas. Era uma espécie de cadeia de acontecimentos que desembocam no que temos hoje. Explicam o nosso mundo actual e os grandes fenómenos da política mundial: o Estado Islâmico, a guerra na Síria, o problema das migrações, o terrorismo na Europa.

Começa, então, o livro na Argélia.
Sim. Em 1991, quando comecei a minha carreira de jornalista, na Argélia, onde houve uma grande crise, ainda ligada à Queda do Muro de Berlim e a abertura dos regimes socialistas árabes. O primeiro sítio onde isto aconteceu foi, precisamente, na Argélia. Aí, o Governo e o regime de partido único resolveram que iriam realizar eleições livres. Apareceram vários partidos e um deles, a FIS - Frente Islâmica de Salvação -, era fundamentalista islâmico e, à primeira volta, venceu o sufrágio, com dois terços dos votos... já nem houve segunda volta nas eleições. Acabou logo ali a abertura do regime e começou uma guerra civil na Argélia. Muitos desses fundamentalistas, que se tornaram terroristas, já vinham da guerra do Afeganistão, onde haviam lutado ao lado dos mujahedin, e é neste ambiente que surge o embrião daquilo que virá a ser o fundamentalismo islâmico e o terrorismo. Essa minha aventura acabou quando fui preso e expulso da Argélia, ao fim de dois meses lá. Podia pensar-se que aquele era o tempo das "vacas gordas" do jornalismo, mas cada uma destas reportagens, só deus sabe o que custou convencer os editores e directores, com orçamentos baixinhos. E passava fome… O pior neste trabalho é o desconforto: a fome, a falta de sono, o passar frio. Nem todos os jornalistas querem este tipo de trabalho ou têm capacidade de o fazer porque uma coisa é viver uma grande aventura e outra é passar os dias em grande desconforto, sem condições, sem sono, sem comer... Por que raio é que eu, com um salário baixo, hei-de sujeitar-me a isto? Todos esses grandes conflitos onde estive estavam, de alguma forma, relacionados com o Islão radical e repetiam-se situações.

Por exemplo?
Por exemplo, os jovens que conheci na Argélia encontrei-os, mais tarde, noutros conflitos, com as mesmas motivações. Os fundamentalistas começaram a aparecer em todo o lado e em conflitos que nada tinham a ver com o islamismo. A certo momento, na Chechénia, segui para as montanhas onde passei dez dias com os rebeldes. Estes, tinham o apoio do povo e faziam comícios em todas as aldeias por onde passavam. Eram verdadeiros independentistas e só queriam isso mesmo: independência da Federação Russa e lutavam por justiça social. Nada tinham de fundamentalistas. Não havia radicais barbudos, com teorias fundamentalistas. Mas, aos poucos, eles apareceram e tomaram conta da revolução. Na Síria, eram movimentos liderados por jovens, que vinham de famílias com poder económico, que tinham viajado, que tinham contacto com o exterior que só queriam liberdade de expressão, acesso a empregos... Muitos estavam dispostos a morrer e morreram, tal como também morreram no Egipto, por estas ideias. Não eram fundamentalistas, só queriam saber que tipo de sociedade construir. Os fundamentalistas eram um grupinho pequeno, muito organizado, num canto, que, com o passar do tempo, se apoderou do movimento.

O Islão é apenas uma desculpa?
As lutas são, muitas vezes, em nome dele, mas não quer dizer que seja realmente isso que motiva o conflito. Costuma- se confundir os terroristas com jihadistas, com fundamentalistas islâmicos... mas não é tudo a mesma coisa. O fundamentalismo não é o mesmo que o terrorismo. Os fundamentalistas, extremistas e muito conservadores, não pegavam em armas para defender o Islão violento e a sharia. O que aconteceu foi que os jihadistas, que pertencem a um movimento violento armado, que quer um Islão político, foram buscar estes fundamentalistas e fizeram uma "união".

Aproveitaram a Queda do Muro de Berlim, da Cortina de ferro, o fim da MAD e da Guerra Fria?
Muitos dos terroristas, nem sequer são muito religiosos. As pessoas que atacaram o WTC, em Nova Iorque, radicalizaram-se rapidamente. Tiveram umas aulas à pressa com uns imãs e começaram a usar barbas. Após o ataque às Torres Gémeas dizia- se que tinha acontecido porque as pessoas sentiam que os países ricos, em especial os E.U.A., lhes tinham roubado o futuro e o bem-estar. No tempo da Guerra Fria, se não gostavam do capitalismo, havia a alternativa do comunismo. Quando existia a União Soviética, o mundo capitalista, não era tão “capitalista radical” como hoje, porque havia um contrapoder. O capitalismo tinha de ser mais social, mas bem comportado, mais regulado. Mas, nos anos 80, com Reagan e Thatcher, o capitalismo ficou com rédea solta. A certo momento, a única força capaz de ser uma alternativa a esta sociedade capitalista foi o fundamentalismo islâmico. Com um estilo de vida diferente e até armas. Isso foi muito atractivo para todos aqueles que se sentiam injustiçados. Muitas pessoas que combateram no Estado Islâmico, nem sequer eram muçulmanos.

“Temos a ilusão de que vivemos numa bolha onde o mundo não nos afecta!”

Ao longo deste anos de trabalho em cenário de guerra, deve ter temido pela vida. Como se lida com essa situação?
É normal ter medo. Temos de nos comportar como seres humanos normais. O problema é quando há jornalistas ou outras pessoas que trabalham nesse tipo de cenários que perderam o medo ou que ainda vivem a loucura heróica dos principiantes. Ou são demasiado blasés e cínicos ou são demasiado idealistas.

Neste momento, fala-se, nos media e nas redes sociais, acima de tudo, de Trump, do Brexit...
Fala-se das coisas que as pessoas sentem que são importantes para a sua vida. Falam do Brexit porque têm amigos ou familiares em situações complicadas ou porque pensam em emigrar para o Reino Unido. As pessoas têm interesse, só não têm noção do interesse. Muitas das coisas que se passam no mundo, podem ter uma influência directa na nossa vida. Temos a ilusão de que vivemos numa bolha onde o mundo não nos afecta! E é isso que faz com que não haja interesse. Mas é um mito pensar que, dantes, havia mais interesse nas notícias internacionais... porque, na verdade, nunca houve.

Esteve nos primeiros dias do jornal Público, quando ele foi anunciado como sendo "o melhor e maior diário nacional"...
Estive 23 anos no quadro e mais quatro como colaborador e agora mandaram-me embora. Na verdade, eu sai por minha vontade. Isto não foi um despedimento. Saí na última grande vaga de despedimentos no Público, há quatro anos. Na ocasião, não fiz parte da lista dos despedidos, mas eu, a Alexandra Lucas Coelho e a Margarida Santos Lopes, é que fomos lá dizer que íamos embora. Mantive-me como colaborador, com uma avença fixa e foi isso que agora a Direcção eliminou.

O que se passa com os grandes jornais que estão a despedir os grandes nomes do jornalismo?
Estão com apertos económicos. Não têm dinheiro, não vendem e têm de fazer cortes. Não enviam os jornalistas a lado algum e despedem. Por causa de toda esta crise, o jornalismo começou a ser visto como uma profissão pouco especializada. O jornalismo já não é uma actividade intelectual, do espírito, onde são precisas pessoas muito boas, que formam e informam. Hoje, pensa-se, que o jornalismo é um trabalho pouco especializado e mal pago, que qualquer um faz. Quem tem esta atitude, não acredita no jornalismo e pensa que ele vai acabar a curto prazo e passará a ser executado por "técnicos de comunicação". O jornalista, com rigor ético, deontológico, com arte de escrita, com uma visão superior e capacidade de interpretação, com cultura e informação, com grande nível de especialização, está a desaparecer. Os media empregam pessoas jovens a ganhar mal, que, quando quiserem evoluir, arranjam outra profissão.

Como lhe parece que será a Europa daqui a um ano?
Estamos a viver um período crucial da história. Sentiu-se isso, no início da I Guerra Mundial e a solução foi avançar para o conflito. E nós estamos num momento desses. As coisas estão num ponto sem saída. Alguma coisa drástica tem de acontecer para que a vida depois continue normalmente. A tecnologia e a internet modificaram a vida de tal maneira… A globalização fez com que percebêssemos que, no Ocidente, estamos a perder poder económico, empregos e segurança e que a democracia está em crise. Mas, há uns anos, fui à China e perguntava pela crise e questionavamme de volta: "mas qual crise?" Sempre que se perdeu um emprego nos E.U.A., ganharam-se 500 empregos na China. Os países na Europa e os E.U.A. sentem-se ameaçados, porque a democracia também está em perigo e a reacção do público é votar em partidos fascistas e populistas. Numa previsão imediata podemos acreditar que iremos ter uma série de governos fascistas na Europa e a União Europeia desmoronar-se-á.

Perfil
Repórter de guerra

Paulo Moura é natural do Porto, onde nasceu há 57 anos. Escritor e repórter freelance foi, durante 23 anos, jornalista do Público, na secção internacional tendo recebido vários prémios de jornalismo. De 1993 a 1995 foi correspondente permanente nos Estados Unidos, Canadá e México. E chegou a estar na redacção da revista Pública, daquele diário. Repórter de guerra, destacou-se com reportagens no Afeganistão, Argélia, Caxemira, China, Tchetchénia, Haiti, Iraque, Sudão, Egipto, Líbia ou Kosovo, Publicou reportagens em revistas como a Harper's Magazine, a New York Times, o Courrier Internacional, a Lettre International Deutschland, a Lettre Romania, a World Media ou Néon.

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