Viver
Rui Vieira Nery: "O desinvestimento na cultura representa uma ameaça à democracia e à paz"
O antigo secretário de Estado diz que é necessário colocar as artes no centro do modelo de desenvolvimento do País.
Escreveu recentemente sobre estudos científicos que evidenciam que as estruturas auditivas se adaptam. Enquanto musicólogo, que impacto tem sobre si esta ideia?
A reflexão entre objectividade e subjectividade não é aquela que nos habituámos a pensar. Não temos uma espécie de hardware rígido, há uma interacção muito grande entre aquilo que são os nossos impulsos físicos, genéticos, as nossas sinapses cerebrais, e aquilo que é o nosso caldo de cultura. E essa relação formata-nos e à maneira como vivemos.
A forma como recebemos a mensagem é influenciada pela experiência anterior como ouvintes.
Exactamente. E também aponta para um equilíbrio ecológico entre a nossa sobrevivência animal e a nossa condição de animal social. A qualidade da nossa vida depende das maneiras de viver que definimos com os outros. São pistas muito interessantes, que evoluem no sentido do papel da intuição e dos afectos no conhecimento científico. Há muito menos oposição entre pensamento racional e pensamento emocional do que tradicionalmente somos levados a pensar.
Quando olha para as características da produção cultural que habitualmente domina o espaço público, fica preocupado?
Preocupa-me muito porque há uma gama de escolhas muito limitada. Eu seria absolutamente contra a ideia de qualquer tipo de censura ou dirigismo estético, de alguém que determinasse num gabinete de iluminados o que é boa e má cultura. Agora, ninguém pode escolher se não tiver uma gama de escolhas para fazer essa escolha. Justamente uma das coisas mais importantes numa política cultural democrática é podermos viabilizar propostas artísticas e culturais que não teriam subsistência em termos de economia de mercado.
Preocupa-o a falta de representação?
Preocupa-me porque representa um empobrecimento da vida colectiva, de um direito que todos nós temos ao património cultural. Shakespeare, Beethoven, Paula Rego devem poder pertencer a toda a gente, têm mensagens importantes que qualificam a vida de qualquer cidadão. E uma grande parte da sociedade está a ser cada vez mais excluída do contacto, da partilha e da fruição desse legado, que é seu por direito, porque o sistema de ensino não funciona e porque os media também acabam por optar pelo seguro, pela proposta maioritária.
Tem dito que estamos numa situação de emergência, no sector da cultura, em Portugal. Porquê?
Estamos porque o Estado ao longo da última década foi investindo cada vez menos no sector cultural e portanto cada vez menos tem capacidade de assumir as responsabilidades, que a Constituição lhe atribui, de promoção da vida cultural portuguesa. O que é tanto mais de lamentar quando as escolas, apesar de tudo, estão a formar uma série de potenciais profissionais da arte e da cultura, muito qualificados, com coisas muito importantes a dizer, com uma capacidade de renovação muito grande do sector, e esses jovens não encontram depois no mercado de trabalho oportunidades para poder aplicar essa formação caríssima, que todos nós pagámos. Eu penso que o programa do actual governo aponta bem as prioridades da política para este sector, mas, neste primeiro Orçamento [do Estado] a cultura não teve as dotações que deveria ter.
A qualidade da democracia e as liberdades de que gozam os cidadãos numa determinada comunidade também se medem através da forma como ela se expressa em termos culturais e dos apoios do Estado.
Absolutamente. O apoio à cultura é o apoio à sociedade em geral que pode usufruir dessa cultura. Quando estou a apoiar um grupo de teatro, não estou a subsidiar os actores, estou a subsidiar o público que lá vai. Da mesma maneira que seria um disparate dizer que uma política de saúde é para proteger os médicos ou que uma política de educação é para proteger os professores.
Partindo daí, o que é que a situação actual em Portugal nos diz sobre a qualidade da nossa democracia?
Diz-nos que é pobre. De facto, é preciso criar um consenso alargado em termos políticos em torno da centralidade da cultura para qualquer modelo de desenvolvimento. E não é só pelos aspectos imateriais, muito importantes, da qualidade de vida das pessoas, é até por realidades económicas muito concretas. Hoje em dia uma economia no contexto ocidental só é competitiva se incorporar nos produtos que tenta vender componentes de originalidade, criatividade, design, capacidade de despertar afectos. Porque se estamos a falar da mera funcionalidade, há mercados com custos de produção muito mais baixos que nos esmagam. E temos à escala nacional uma potencialidade enorme de desenvolvimento económico a partir do património edificado, mas também a partir do património imaterial.
Mas a cultura também pode ser um instrumento de controlo e através do desinvestimento também estamos a exercer um determinado tipo de controlo.
Claro que sim. Se eu não apoiar estou a excluir uma quantidade de propostas artísticas que contribuiriam para a reflexão alargada das pessoas e estou a viabilizar apenas produtos culturais que transmitem um determinado tipo de mensagem. Se queremos que as pessoas desenvolvam a sensibilidade crítica que é essencial para uma cidadania informada temos de garantir que recebem propostas e modelos de reflexão diversificados para poderem fazer as escolhas democráticas que lhes pertencem. Muito do que estamos a assistir, à escala mundial, do crescimento desenfreado do populismo, do racismo, da intolerância religiosa, tem a ver com a incapacidade de criar uma cultura democrática. E, portanto, com a persistência de valores de exclusão, intolerância e violência que não foram contrariados por uma oferta educacional e cultural que contra-argumentasse relativamente a esses fenómenos.
O desinvestimento na cultura acaba por representar uma ameaça à própria democracia?
O desinvestimento na cultura representa uma ameaça à democracia e à paz – e a todos os valores que consideramos essenciais para uma sociedade digna. Para construir uma sociedade digna, a cultura tem que ser considerada uma área prioritária de investimento.
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