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Rui Vieira Nery: "O desinvestimento na cultura representa uma ameaça à democracia e à paz"

29 set 2016 00:00

O antigo secretário de Estado diz que é necessário colocar as artes no centro do modelo de desenvolvimento do País.

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Escreveu recentemente sobre estudos científicos que evidenciam que as estruturas auditivas se adaptam. Enquanto musicólogo, que impacto tem sobre si esta ideia?
A reflexão entre objectividade e subjectividade não é aquela que nos habituámos a pensar. Não temos uma espécie de hardware rígido, há uma interacção muito grande entre aquilo que são os nossos impulsos físicos, genéticos, as nossas sinapses cerebrais, e aquilo que é o nosso caldo de cultura. E essa relação formata-nos e à maneira como vivemos. 

A forma como recebemos a mensagem é influenciada pela experiência anterior como ouvintes.
Exactamente. E também aponta para um equilíbrio ecológico entre a nossa sobrevivência animal e a nossa condição de animal social. A qualidade da nossa vida depende das maneiras de viver que definimos com os outros. São pistas muito interessantes, que evoluem no sentido do papel da intuição e dos afectos no conhecimento científico. Há muito menos oposição entre pensamento racional e pensamento emocional do que tradicionalmente somos levados a pensar.

Quando olha para as características da produção cultural que habitualmente domina o espaço público, fica preocupado?
Preocupa-me muito porque há uma gama de escolhas muito limitada. Eu seria absolutamente contra a ideia de qualquer tipo de censura ou dirigismo estético, de alguém que determinasse num gabinete de iluminados o que é boa e má cultura. Agora, ninguém pode escolher se não tiver uma gama de escolhas para fazer essa escolha. Justamente uma das coisas mais importantes numa política cultural democrática é podermos viabilizar propostas artísticas e culturais que não teriam subsistência em termos de economia de mercado. 

Preocupa-o a falta de representação?
Preocupa-me porque representa um empobrecimento da vida colectiva, de um direito que todos nós temos ao património cultural. Shakespeare, Beethoven, Paula Rego devem poder pertencer a toda a gente, têm mensagens importantes que qualificam a vida de qualquer cidadão. E uma grande parte da sociedade está a ser cada vez mais excluída do contacto, da partilha e da fruição desse legado, que é seu por direito, porque o sistema de ensino não funciona e porque os media também acabam por optar pelo seguro, pela proposta maioritária.

Tem dito que estamos numa situação de emergência, no sector da cultura, em Portugal. Porquê?
Estamos porque o Estado ao longo da última década foi investindo cada vez menos no sector cultural e portanto cada vez menos tem capacidade de assumir as responsabilidades, que a Constituição lhe atribui, de promoção da vida cultural portuguesa. O que é tanto mais de lamentar quando as escolas, apesar de tudo, estão a formar uma série de potenciais profissionais da arte e da cultura, muito qualificados, com coisas muito importantes a dizer, com uma capacidade de renovação muito grande do sector, e esses jovens não encontram depois no mercado de trabalho oportunidades para poder aplicar essa formação caríssima, que todos nós pagámos. Eu penso que o programa do actual governo aponta bem as prioridades da política para este sector, mas, neste primeiro Orçamento [do Estado] a cultura não teve as dotações que deveria ter. 

A qualidade da democracia e as liberdades de que gozam os cidadãos numa determinada comunidade também se medem através da forma como ela se expressa em termos culturais e dos apoios do Estado.
Absolutamente. O apoio à cultura é o apoio à sociedade em geral que pode usufruir dessa cultura. Quando estou a apoiar um grupo de teatro, não estou a subsidiar os actores, estou a subsidiar o público que lá vai. Da mesma maneira que seria um disparate dizer que uma política de saúde é para proteger os médicos ou que uma política de educação é para proteger os professores. 

Partindo daí, o que é que a situação actual em Portugal nos diz sobre a qualidade da nossa democracia?
Diz-nos que é pobre. De facto, é preciso criar um consenso alargado em termos políticos em torno da centralidade da cultura para qualquer modelo de desenvolvimento. E não é só pelos aspectos imateriais, muito importantes, da qualidade de vida das pessoas, é até por realidades económicas muito concretas. Hoje em dia uma economia no contexto ocidental só é competitiva se incorporar nos produtos que tenta vender componentes de originalidade, criatividade, design, capacidade de despertar afectos. Porque se estamos a falar da mera funcionalidade, há mercados com custos de produção muito mais baixos que nos esmagam. E temos à escala nacional uma potencialidade enorme de desenvolvimento económico a partir do património edificado, mas também a partir do património imaterial. 

Mas a cultura também pode ser um instrumento de controlo e através do desinvestimento também estamos a exercer um determinado tipo de controlo. 
Claro que sim. Se eu não apoiar estou a excluir uma quantidade de propostas artísticas que contribuiriam para a reflexão alargada das pessoas e estou a viabilizar apenas produtos culturais que transmitem um determinado tipo de mensagem. Se queremos que as pessoas desenvolvam a sensibilidade crítica que é essencial para uma cidadania informada temos de garantir que recebem propostas e modelos de reflexão diversificados para poderem fazer as escolhas democráticas que lhes pertencem. Muito do que estamos a assistir, à escala mundial, do crescimento desenfreado do populismo, do racismo, da intolerância religiosa, tem a ver com a incapacidade de criar uma cultura democrática. E, portanto, com a persistência de valores de exclusão, intolerância e violência que não foram contrariados por uma oferta educacional e cultural que contra-argumentasse relativamente a esses fenómenos.

O desinvestimento na cultura acaba por representar uma ameaça à própria democracia?
O desinvestimento na cultura representa uma ameaça à democracia e à paz – e a todos os valores que consideramos essenciais para uma sociedade digna. Para construir uma sociedade digna, a cultura tem que ser considerada uma área prioritária de investimento.

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