Opinião
2X21- Doix mil e vinte e um
Não precisamos de Covid para nos roubar aquilo que já demos de barato: a capacidade de perdoar.
Ao esvaziar as nossas ruas, as nossas lojas, os nossos restaurantes, os nossos lares, a pandemia roubou-nos todo o espaço. Bastaram dois ou três meses para irmos além do que os nossos decisores nos obrigavam.
Se passávamos por alguém sem máscara numa esplanada a apanhar sol na boca, de imediato íamos fazer queixinhas nas redes sociais das autarquias.
Pedir ao “Senhor Doutor” que acudisse, que mandasse o exército, a força aérea, para deixar cair uma bomba naqueles malucos que punham em causa a sociedade civil.
Se alguém se demorava mais um minuto nos parques a passear os filhos, lá vinha o Senhor Cidadão melhor que os outros filmar com o telemóvel à distância social dos cobardes, gritando do outro lado da rua “olhem pésta vergonha”, passando por cima de direitos constitucionais, fazendo um uploadzito no seu face enquanto dizia à cantora X que tinha umas grandas mamas, e que se não quisesse comentários desses que “vestisse gola alta.”
Fim de citação.
Moralistas que saíram debaixo da pedra que Salazar pôs em cima deste País e que nem quase cinquenta anos de “liberdade” conseguiu aliviar do nosso coração.
Em cada português há um delator.
Por isso aguentámos durante cinquenta anos uma ditadura que também nos tirava das ruas.
Que nos enfiava em casa a ouvir o relato, a rezar, comendo uma pouca de toucinho com pão.
Nunca lhes ocorreu que também eles estavam no sítio errado à hora errada, a filmar, a barafustar com o outro em vez de o perdoar.
Nietzsche previu que a nossa cultura se tornaria numa distorção do dogma judaico/cristão da culpa.
Adiantou ainda, definindo toda a nossa actualidade, que a capacidade de perdoar, que deve, segundo Jesus Cristo, ser a fase seguinte da culpa, iria desaparecer e... cá estamos nós.
Virulentos.
Com a comunicação social a mandar achas para a fogueira do achismo.
Com fascistas que nem sequer sabem escrever “fachismo", pobres burros do teclado.
Na morte infeliz de Bruno Candé, a apenas se acenderem as fogueiras online dos do costume, exigindo a pena de morte a um veterano do Ultramar.
Nunca, mas nunca se falou, das condições terríveis em que vivem, morrem e sofrem quem “lutou”, sem o querer, pela “pátria”.
Culpa, culpa, culpa, sem perdão.
Não precisamos de Covid para nos roubar aquilo que já demos de barato: a capacidade de perdoar.
Que não é católica, nem budista, nem yogin.
É pouco mais que deitar o mapa fora.
Que metermos uma máscara nas fuças.
Ao menos a máscara vai tapando a vergonha do mundo que os nosso filhos herdarão.