Opinião
A certeza da incerteza
Uns médicos dizem-nos: usem máscara; outros não usem máscara, e, eu, com uma N-95 dentro de um saco de plástico desinfectado
Para o nosso tempo não estar contado, temos de contar os nossos passos.
Uma vez por semana: farmácia e supermercado. Vir logo para casa, descalçar as sapatilhas, deixá-las à porta.
Virar a roupa “da rua” ao contrário, arejá-la na varanda, ou, então, cesto da roupa com ela. Lavar as mãos até ao cotovelo, cantar os parabéns a você, passar gel desinfectante, espreitar o stock da despensa.
“Teletrabalhar”, ligar o zoom para as aulas, ser pai, cozinheiro, professor, marido, empresário e músico perdido num mundo que teima em não fazer o esforço nem para se entender, nem para “entender-se”.
Música e escrita. Nunca me foi tão difícil, como nestes incertos tempos, aferir da “utilidade” das mesmas. Bem sei, a meta, a física, o consolo, o entretenimento, o esclarecimento: tudo adquirido como importante ou até essencial.
Mas, confesso, faço um esforço tremendo para estar ao nível dos meus colegas “músicos” e “artistas” no entendimento que lhes é, ao que parece, tão fácil, tão evidente, da nossa importância (cultural) na sociedade civil.
Luto com todas as minhas forças para me convencer da importância que tenho nas vidas das pessoas que “toquei” com a minha música e escritos.
Para me mentalizar que elas têm tantas saudades minhas que não pode passar um mês e meio de quarentena sem eu lhes entrar pela casa dentro, em directo do meu sofá, a mostrar-lhes o roto das minhas pantufas, em vez dos meus cabelos ao vento das luzes e decibéis.
Luto para me convencer que isso lhes serve de alguma coisa e de que, nas suas preocupações rotineiras, há espaço para a minha “vontade de criar” que me define, ou será que me define, hoje em dia não sei, não me posso é esquecer de desinfectar as mãos, de tentar comprar álcool (pelo menos 70%) a preços de guerra.
Quanto a dar opinião: nem sei que vos escreva.
Uns dizem que é só uma gripe, qualquer doutor de Informática (com todo o respeito) com aquela barba malfeita de dois ou três dias nos chama ignorantes e covardes porque esta “porcaria toda” é só uma gripe mata-velhos, com curvas desenhadas a papel vegetal dos picos de gripe anuais.
Uns médicos dizem-nos: usem máscara; outros não usem máscara, e, eu, com uma N-95 dentro de um saco de plástico desinfectado, à espera de uma indicação clara que me devia dar a DGS, mas, pelos vistos, a DGS é um embuste, li no facebook.
Há também aquele amigo de um amigo de um amigo que só tem 30 anos, mas que está ligado a um ventilador em hospital “tal".
Para cada caso, sua excepção, para cada vírus, seu ambiente.
E a Suécia que é melhor que todos nós, e a Bielorrússia mais louca que todos, e nós fechados em casa, a cumprir um plano sinistro do capitalismo vigilante; ou, pelo contrário, a sermos cidadãos a achatar uma curva num gráfico que não sabemos, nem nos ensinam a ler.
O rapaz fixe do CTT Expresso, um dia de luvas, outro de máscara, outro de viseira, a tocar à campainha com uma caixa de vinho para nós. De vez em quando paro. Fecho a porta e desinfecto a mente.
Sei que nada sei, que nada sabemos, que estamos a ir no dia-a-dia, sem corpo ou mente para absorver tudo que nos querem aconselhar ou vender.
Leio a magnífica entrevista do doutor João Lázaro, meu amigo e terapeuta, aqui mesmo no Jornal de Leiria, partilho-a com os amigos, cometendo o mesmo erro de os tentar “despertar”.
Sei lá eu se me meto mais num avião para ir à Rússia ou à China tocar, eles que mentem no número de mortos, sei lá se não deixo mas é de assinar os jornais que dizem o seu e o seu contrário, é, não é, é, não é, é, não é.
Na verdade nunca tantos não “acertaram" e cá estamos nós a olhar pelas varandas (quem as tem), à espera de Maio para irmos beber um café, pôr a conversa em dia, até que algo ou alguém apague a luz outra vez e lá vamos nós buscar a vela à gaveta, as máscaras e o gel à casa de banho, a alma ao estendal onde a temos agora pendurada, a secar de tanta gotícula.