Opinião
A caravana ladra e os cães passam
Urge reabilitar o pensamento crítico, porque uma «supervacina contra a insensatez» nos imunizará de tomar decisões sem que compreendamos a sua lógica
«Cão como Nós», escrito em 2002 por Manuel Alegre, é um livro que sendo sobre um cão, é sobre os Homens. Em particular, sobre indivíduos com um certo tipo de valores, aparentemente contraditórios: a liberdade, a fidelidade, a solidariedade, a independência e a altivez. A propósito do seu cão, o poeta enaltece que «fazia ouvidos moucos, aparenta(ndo) indiferença, fosse por espírito de independência, fosse porque gostava de armar à originalidade», não deixando de ser confiável.
Também Vítor Hugo afirmou que «O cão é a virtude que, não podendo fazer-se homem, se fez animal». No reino das criaturas humanas, o desejo instintivo de dominação, pode estender-se àqueles que fazem parte do seu núcleo proximal e mais alargado. Como comprova a História universal, o anseio de poder e soberania de um déspota, não tem limites ou racionalidade.
O mesmo sucede com a sofreguidão da posse de bens materiais ou a avidez desembestada sem fronteiras. Aquilo que os gregos chamavam «hybris» (desmesura), representa uma das perversidades humanas. José António Marina (filósofo e pedagogo espanhol), face ao conformismo da humanidade, no seu mais recente livro intitulado «A vacina contra a Insensatez», conceptualiza práticas para enfrentar este contágio. Tomamos decisões sem questionar, sendo induzidos à manipulação.
Urge reabilitar o pensamento crítico, porque uma «supervacina contra a insensatez» nos imunizará de tomar decisões sem que compreendamos a sua lógica. Mesmo dotados de inteligência, incorremos em erros de enviesamento, atrocidade e estupidez. Ao fenómeno de distorção cognitiva e decisória, acrescem crenças deturpadas, notícias falsas, mensagens de doutrinação, boatos e ideologias extremistas.
A sofisticada indústria de persuasão gerada pelos algoritmos das redes e da IA, em jeito de engodo, lança o anzol aos peixes, sem que haja entidades que o regulem ou contraponham, pois, a meta é capturar primeiro, obter os lucros e aferir depois. A inoculação de ideias sustentadas reforça o pensamento divergente, podendo estabelecer-se uma nova ciência designada de «Imunologia Mental». Um dos seus postulados é a inteligência ética e reflexiva. Ocupar-se-á do conhecimento empírico, validando cientificamente os primados da verdade comprovada, encarregando-se dos problemas que comprometam a satisfação, a empatia reflexiva e o bem-estar na interacção social não digital. «Porque é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga» (Clarice Lispector).