Opinião
Ambivalências
Quem somos realmente? O que é mesmo importante?
Na televisão passam imagens de multidões em praias, em concertos, em esplanadas, em percursos à beira mar, e falta-me lá estar; faltam-me as proximidades, o som das vozes misturadas, as palavras desgarradas que dão notícias soltas dessas vidas desconhecidas, e falta-me a liberdade de com eles respirar, directamente, o ar.
Mas, olho o espaço do meu confinamento e as três pessoas com quem o partilho, e reconheço como me tem sabido bem prever, cuidar, proteger, e criar bem-estar.
Penso depois nos meus amigos: nos encontros, na partilha de histórias, de risos, e de assuntos sérios, e sinto a falta da jantarada, da ida ao cinema, ou do café.
Mas olho também o grupo em rede social que criámos, e de como é agora diária a palavra, a brincadeira, o saber como se está, o mesmo acontecendo com a família de quem vivo longe; trocam-se lembranças de livros, de filmes, de música, e de ideias, contam-se pequenos feitos, aconselham-se cuidados, partilham-se experiências e fotografias, e dão-se conta de estratégias e descobrimentos para este viver de portas fechadas.
Em tudo, uma proximidade nova. Vejo agora a imagem dos estúdios de dança silenciosos e vazios, e sinto grandes saudades dos alunos, de lhes dar aulas, de lhes tocar para os corrigir, de me sentar com eles naquele chão especial e conversar, de lhes dar beijos, e de os abraçar.
E vejo-os logo depois no monitor, transformado em quadradinhos cheios de gente lá dentro, de todas as idades, que de longe se faz próxima, que aprende estratégias para aprender, que se esforça ainda mais para conseguir arrumar os braços, alongar as pernas, procurar o equilíbrio, e descobrir outra forma de continuar a criar, usando os limites como motivação, e a sede de espaço como descoberta para espaços novos.
Vejo também, em quadradinhos carregados de sorrisos, de prazer de viver, de amizade, e de vontade de fazer acontecer, as minhas alunas séniores!
Lutam com aplicações de videoconferência que desconheciam, perguntam as vezes que são precisas como se faz, como se soluciona o erro, como se resolve no computador ou no telemóvel, teimando em aprender outra forma de fazer, porque não querem deixar de fazer!
E arrastam cadeiras e mesas, desesperam com as falhas de rede, mas continuam a dançar!
No muito que já tivemos que mudar, e no tanto mais que irá permanecer mudado, descobre-se talvez a nossa essência como nunca a tínhamos até agora encontrado.
Quem somos realmente? O que é mesmo importante?
Até onde podemos, e queremos, mesmo chegar?
Como fazer de outro modo?
As respostas chegam na reflexão, no olhar novo, na recriação.
Reinventar, é a palavra mais certa.
A palavra que contém todo o futuro, toda a energia, toda a capacidade e todo o sonho que sempre tivemos, que todos temos, que sempre teremos.