Opinião
Quem somos
Entrar no Japão é aceitar o convite para abandonar as fundações da cultura ocidental de partida e acolher tudo aquilo que um outro chão pode oferecer
«O coração viajante não se enraíza
antes quer ser
braseira ambulante.» O Eremita Viajante, Matsuo Bashō
Talvez tenha sido a leitura de um haiku do poeta Matsuo Bashō que tenha estado na origem da minha paixão pelo Japão. A contensão, a síntese e a subtileza, o infinito no detalhe num poema com apenas dezassete sílabas, desencadeou um fascínio por uma cultura que não cessou de aumentar com os anos.
Um encantamento que se foi adensando com a leitura de autores como Yasunari Kawabata ou Kenzaburo Oe, com a descoberta das gravuras de Katsushika Hokusai e Utagawa Hiroshige, com os filmes de Ozu, Kurosawa e Hayao Miyazaki, com os padrões dos panos usados no furoshiki (técnica japonesa milenar de embrulhar com tecido) e com a delicadeza dos papéis nesse diálogo íntimo que estabelecem com a caligrafia e as mãos, a luz e as sombras.
Os caminhos do chá, da meditação zen, do ikebana, as texturas, sabores e formas de uma gastronomia onde estética e paladar se fundem transportando toda uma civilização nas pequenas parcelas que cabem nos hashis.
2025 foi o meu ano japonês e será seguramente também a data que marcará um antes e um depois no entendimento do que pode ser a interpelação pessoal e cultural motivada por uma viagem.
Entrar no Japão é aceitar o convite para abandonar as fundações da cultura ocidental de partida e acolher tudo aquilo que um outro chão pode oferecer. O convite é sedutor mas igualmente inquietante, não só pelo contraste com aquilo que nos define como comunidade mas também pelo questionamento que propõe àquilo que entendemos como indivíduo e grupo.
Tudo funciona exemplarmente nas mais populosas cidades japonesas, desde a complexa rede de transportes, à circulação nas grandes avenidas, ao abastecimento correcto das grandes cadeias comerciais, às ordeiras filas de entrada nos templos. Não há lixo nas ruas e o silêncio chega a ser excêntrico quando comparado com a quantidade de pessoas que circula diariamente em cidades como Tóquio. O infinito no detalhe como nos haikus de Bashō. A metrópole moderna e eficaz para a qual contribui cada um dos seus habitantes.
Ora é de novo aqui que o Japão surpreende pois toda esta frenética contemporaneidade, marcada pela tecnologia e pela sofisticação e até por alguma excentricidade, coabita com uma civilizada antiguidade e com a mais cerimoniosa cordialidade. É difícil não fazer vénias no Japão porque é igualmente difícil não ficar grato a todo e a qualquer um pela sua nobre tarefa, seja ela manter o canteiro do Templo Dourado em Kyoto sem a semente do dente-de-leão que o vento mudou de lugar, ou o polícia que indica o caminho certo a um estrangeiro num irrepreensível japonês como se ele dominasse o idioma de forma exímia.
Como na proposta da meditação zen, um chamamento constante que percorre a presença silenciosa dos templos budistas e dos jardins de pedra por entre os arranha-céus das cidades japonesas, abrirmo-nos ao Japão, é, talvez, ou foi para mim, esse inesperado encontro com a mente de um principiante que se questiona, observando-se num espelho desconhecido, procurando saber quem realmente é.
Não encontro melhor forma de perpetuar um destino de férias na memória. Nem mesmo de acrescentar uma nova dimensão ao olhar que dedicamos ao mundo e a nós próprios.