Sociedade
Adeus “aparições”, olá “visões de Fátima”
Os eventos na Cova da Iria passaram a ser “revelação privada”
Após um fim-de-semana em que a “sagrada família dos três F” esteve em destaque em Portugal… com o Fado a ser substituído, momentaneamente, pelo festival Eurovisão, ficaram em cima da mesa novas ideias sobre Fátima.
A mais importante de todas é que as aparições na Cova da Iria foram, afinal, “visões”. Dentro da Igreja Católica, há vozes que fazem uma nova leitura de Fátima.
Sem colocarem em causa a importância espiritual, bispos, teólogos e pensadores eclesiásticos marcaram os dias pré-13 de Maio com várias afirmações sobre a natureza do que se passou em 1917.
Fundamentam as suas opiniões no seu próprio entender, em documentos oficiais da época, em relatos publicados na imprensa e autores que estudaram os acontecimentos. A alteração semântica tem génese na mais alta cúpula católica.
O cardeal e teólogo Joseph Ratzinger, antigo conselheiro de João Paulo II, sempre se referiu a “visões” e jamais a “aparições”. Em assuntos de tal importância, as palavras são previamente pensadas, pesadas e avaliadas para não passar mensagens erradas.
E isso é ainda mais válido no caso de Ratzinger, teólogo que foi entronizado como Bento XVI. O actual Papa emérito, que visitou o santuário em Maio de 2010, inseriu Fátima na categoria de “revelação privada”, com “apelo à fé e à conversão”.
“Seguindo o Catecismo da Igreja Católica, percebemos que este fenómeno implicou um escrutínio das autoridades, mas nunca assumirá a natureza de matéria de fé. A importância deste tipo de revelação encontra-se numa veracidade que alinha a aparição com a ‘revelação bíblica’, que é o referencial máximo de profecia e de revelação pública”, refere Paulo Mendes Pinto.
O coordenador da área de Ciência das Religiões, na Universidade Lusófona explica que “visão”, subalterniza o fenómeno, mas abre-o às possibilidades de interpretação e “às formas mais pessoais de viver a fé”.Torna assim a revelação privada em vez de pública, e isso ajuda a explicar inconsistências encontradas nos relatos das três crianças.
Vestia de azul e tinha saia até aos joelhos Será seguro dizer que Portugal inteiro conhece a história de Lúcia, Jacinta e Francisco, as crianças que, em 1917, disseram à família e aos vizinhos que lhes aparecera, na Cova da Iria, uma “senhora em cima de um carrasco”, que entenderam ser a virgem Maria.
Esta ter-lhes-á transmitido um segredo em três partes, sobre o fim da Grande Guerra, a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria e uma figura de branco, provavelmente o Papa, que subia com “outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas” “uma escabrosa montanha.
O padre Manuel Formigão, fez os primeiros interrogatórios às crianças que achou "rudes e ignorantes". “A Jacintha afirma que o vestido da senhora chega apenas aos joelhos. A Lúcia e o Francisco declaram que desce até próximo dos artelhos”, concluindo que "Nossa Senhora não pode aparecer senão o mais decente e modestamente vestida”, escreveu.
E como tal, o vestido desceu até perto dos pés e libertou-se das vestes azuis, relatadas pelos videntes num primeiro momento, substituindo-as por um manto branco, que descia até ao chão.
Lúcia, que viveu até aos 87 anos, foi produzindo sucessivos textos, cada vez mais minuciosos, sobre os segredos como se, com a idade, se fosse lembrando de mais detalhes, remetendo as interpretações para a Igreja e seus teólogos.
A referência de Lúcia à Rússia só é feita em 1929. Já a terceira parte do “segredo de Fátima” só apareceu, numa carta escrita em 1944, em Tui, Espanha. Tal como em qualquer outro fenómeno atreito a dogmas, a Igreja fez a aplicação da velha divisa agostiniana; da dúvida resulta a fé. E duvidou.
Frei Bento Domingues é um dos teólogos que dizem que Fátima é “ambígua”, embora ressalve que não é dos críticos que dizem que “Fátima nunca mais”, fazendo referência ao padre Mário Oliveira.
O frade declarou ao Observador que acredita em Deus, em Jesus Cristo e na mãe de Jesus. “Naqueles fenómenos estou sem saber. Não faz parte do credo católico.”
O referido padre Mário Oliveira, em declarações ao JORNAL DE LEIRIA, estranha que “Lúcia fizesse perguntas à árvore e só ela ouvia as respostas.”
O sacerdote afastado pela hierarquia católica pelas suas posições extremadas, diz que “o clero de Ourém estava todo metido. O cabecilha foi o cónego Formigão. O clero criou um teatrinho e pôs as crianças a fazerem-no.”
Um pedaço de barro
Januário Torgal Ferreira, antigo bispo das Forças Armadas, alinha pela bitola de Bento XVI.
Após dizer que não gosta do valor que a imagem da virgem tem para os católicos, lança mão do segundo mandamento, e diz: “escandaliza-me que as pessoas só rezem àquela imagem e se despeçam dela a chorar. Eu nunca me despeço de Nossa Senhora, porque ela está sempre comigo. Aquilo é um pedaço de barro!”
A falta de cuidado nas palavras usadas para o “aparecimento” da virgem também o agasta. “Não julguem que Nossa Senhora andou a fazer o pino em Fátima. Apareceu na consciência das pessoas."
Anselmo Borges, sacerdote, pensador e filósofo, por seu turno, afirma que, “sem presença física”, o que as três crianças sentiram foram visões. “Porque Maria está em Deus e não em corpo físico. Os três pastorinhos tiveram experiências interiores e isso não implica delírio ou alucinação. Aconteceram da maneira que crianças apreenderiam, naquele contexto de perseguição da Igreja pela Primeira República, da Grande Guerra e onde havia pregadores itinerantes que aterrorizavam os fiéis com o Inferno e anunciavam um deus que não é o Deus do Evangelho.”
Qualquer que seja a interpretação, a maior parte dos pensadores da Igreja classifica as “visões” como “um fenómeno místico, de fé, de paz e assente na mensagem de Fátima”.
Sem “hysterismo”
Em busca de validação
No sábado, o Papa Francisco canonizou Jacinta e Francisco após a conclusão pela Causa dos Santos do processo de avaliação do milagre que a tal os tornaria elegíveis.
Lucas, a criança brasileira curada de um traumatismo craniano grave e sem esperança médica por intercessão dos pastorinhos esteve em Fátima no fim-de-semana.
Não se pense que foi um processo fácil e sem problemas. O santuário trabalhou durante anos para o objectivo. O JORNAL DE LEIRIA teve acesso a uma carta datada de 1991, onde se procurava ainda por provas de que os avistamentos tinham sido reais e não apenas uma alucinação.
Nele, o padre Luciano Cristino, responsável, na época, pelo Serviço de Estudos e Difusão do santuário, apela à família do médico António Rodrigues de Oliveira, de Leiria, que lhe comprove a existência de uma certidão onde aquele teria avaliado o estado mental das crianças.
O clínico é citado em documentos da Igreja por Manuel Formigão, um dos interrogadores da Igreja e impulsionador de Fátima, muito influenciado por Lourdes, como o médico que as teria examinado em 1917. “Não manifestam o mais pequeno symptoma de hysterismo s,egundo a declaração de um médico consciencioso”, escreveu o padre.
A resposta do genro do clínico, Afonso de Sousa, é curta: “não foi encontrado no espólio profissional do meu sogro qualquer relatório ou apontamento sobre o exame médico”. Adiantando que “se tal exame foi, na realidade, feito, o que tenha concluído em nada alterou a sua posição pessoal face ao problema religioso.”
Oliveira foi ateu e republicano até ao fim da vida.