Manuel Antunes: "Já abri 30 mil corações e nunca lá encontrei o amor. Mas também não sei como as pessoas reagem"
Sociedade
Manuel Antunes: "Já abri 30 mil corações e nunca lá encontrei o amor. Mas também não sei como as pessoas reagem"
14 jul 2016 00:00
O cirurgião fala da relação da ciência com a criatividade e do peso das emoções na Medicina.
Cláudio Garcia
claudio.garcia@jornaldeleiria.pt
A sala de operações mudou muito desde o seu primeiro dia como cirurgião?
Eu é que mudei. Quando se entra pela primeira vez na sala de operações é uma paixão. Fui para cirurgia porque entrei numa sala onde o professor Linhares Furtado estava a operar, em Moçambique, um doente com tumor, e ele de um pedaço de intestino fez uma bola que ficou a funcionar como bexiga. E eu disse para mim próprio, sem o dizer a ninguém: um dia quero ser pelo menos tão bom como este tipo. Era estudante do quarto ou quinto ano da Faculdade de Medicina, em Lourenço Marques.
E em termos técnicos e tecnológicos?
Também, naturalmente. Mas nestes mais de 40 anos como cirurgião, mudei eu muito mais. Na abordagem, na maturidade e também no descolar das emoções. As operações que faço hoje poderia fazê-las na mesma sala em que fiz a primeira operação de cirurgia cardíaca em 1976, com o mesmo equipamento. Mas, evidentemente, se quisesse, ainda hoje poderia andar num Ford T. Portanto, a tecnologia melhorou muitíssimo, contribuiu principalmente para maior segurança do doente e das cirurgias, mas também para o próprio conforto do cirurgião.
Consegue identificar os maiores avanços?
Há operações que eu às vezes comparo com o ovo de colombo, em que alguém subitamente teve uma brilhante ideia e transformou uma coisa que não tinha solução, ou pelo menos solução capaz, em algo com solução verdadeira. Procedimentos globais ou pequenas alterações de técnica. Por exemplo, começar o ponto por este lado e não por outro. Eu próprio sou reconhecido por alterações descritas por mim, que têm o meu nome. Não são importantíssimas, mas a verdade é que há coisas que a gente hoje aborda que na altura em que eu comecei na cirurgia ninguém se tinha lançado naquela ideia.
Além da maturidade, também mudou em si a capacidade técnica e a criatividade?
Tudo. Fui, durante muito tempo, ainda hoje sou, considerado uma autoridade internacional na reparação da válvula mitral. Escrevi a primeira monografia sobre esse tipo de intervenção, que ajudei a aperfeiçoar, em 1988, e até 2011 foi a única monografia sobre o assunto. Hoje já operei alguns 3.000 [doentes] e estou sempre a aprender.
Um cirurgião do seu nível é sobretudo um engenheiro ou também tem algo de arquitecto?
Tem de tudo. O cirurgião, além de ser um cientista e um técnico, tem de ser, também, um artista.
As soluções inovadoras têm muito desse lado criativo?
Têm. Quem é que conhece os discípulos de Leonardo Da Vinci? Ninguém. A arte pode ser aperfeiçoada, mas ou se tem ou não se tem. Tenho a certeza que ele era quem dava o traço final nas suas pinturas e eu oriento-me muito por essa actividade. No meu serviço eu sou o mais sénior e portanto permito-me dar o último retoque se for necessário. E os meus doentes esperam isso de mim, que seja eu a assumir essa responsabilidade. Muitas vezes não os opero, mas o plano da intervenção é feito em equipa.
Os avanços tecnológicos também significam riscos?
Muitos. Um deles é a desumanização. E em segundo lugar o que eu chamo o efeito páraquedas. Se um indivíduo tem muito medo de andar de avião e quer dois páraquedas arrisca-se a que se embrulhem um no outro. Não só os médicos confiam demasiados nos instrumentos de diagnóstico como algumas tecnologias podem ter contra-indicações e riscos. Por exemplo, as técnicas de imagem com radiação, que têm consequências futuras. Mas não só. Estou a falar sobretudo na tecnologia do coração artificial. Esta coisa de tirar um coração de carne e pôr lá uma bomba, tem muito que se lhe diga. Já abri 30 mil corações e nunca lá encontrei o amor dentro. Mas também não sei exactamente
como é que as pessoas reagem. Tem a ver com a personalidade, com a emotividade, que é diferente em cada um de nós. E mesmo nos doentes transplantados, em que a gente põe o coração de uma pessoa noutra, vemos grandes alterações psicológicas.
Estamos a falar dos limites da ética?
Eu costumo dizer que a ética é uma ciência muito fluída. Os limites da ética para si não são certamente iguais aos meus. Às vezes encara-se isso como se fosse uma coisa muito simples. A gente põe uma lei e fica tudo resolvido. E não é assim. Vem aí agora a discussão sobre a eutanásia e eu quase que dizia: se alguma vez algum doente me pedir ajuda para morrer eu digo tome lá uma pistola, vou-me embora e o senhor dá um tiro na cabeça.
Não coloca em nenhuma circunstância a hipótese de o médico ter um papel de suporte, de auxílio?
Uma coisa é o médico ter a noção, de acordo com a família e com o próprio doente, de que já não pode fazer mais. Eu posso tomar a decisão de dizer assim: se este doente fizer uma paragem cardíaca não vou reanimá-lo. Outra coisa é alguém que está ligado a um ventilador e a gente sabe que se desligar o ventilador ele vai morrer daí a cinco minutos.
A diferença, para si, está entre a passividade...
... e a actividade, sim. Uma coisa é a eutanásia passiva, que não é eutanásia, e outra coisa é a eutanásia activa.
Mas compreende o ponto de vista dessas pessoas?
Sob o ponto de vista democrático, a gente tem de compreender a opinião de todas as pessoas. Mas aquilo que me parece é que há coisas que até se conquistam com o tempo. Um cirurgião dos mais conhecidos da história da cirurgia geral mundial, no fim do século XIX, dizia que aquele que alguma vez ousar suturar uma ferida do coração merece o desprezo dos seus colegas. Portanto, há pouco mais de um século havia um cirurgião bem conhecido que achava que no coração não se devia tocar.
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