Sociedade

Valter Hugo Mãe: “A vida é toda ela feita de privação e de fartura”

3 nov 2016 00:00

Desta vez, a acção passa-se no Japão antigo, num livro que cresce a partir de duas personagens principais que se detestam. O escritor fala dos seus 20 anos de carreira e do futuro que já se avista

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Jacinto Silva Duro

Homens imprudentemente poéticos não era para ser o título do seu livro e a mudança teve até um dedo islandês...
À última hora, decidi que a estranheza e, ao mesmo tempo, uma certa desencantada ternura seria mais adequada para definir o romance... Durante muito tempo, o livro tinha como título A Arte da fomeaté que o Hilmar Örn Hilmarsson, a quem falei do romance, alertou-me para o facto de o Paul Auster ter um livro, uma recolha de ensaios, com esse nome. Por isso, precisei de mudar o título, alterei-o ainda para A fúria de cada deus. Só na recta final é que adoptei esta expressão que já estava dentro do livro.

Estes Homens imprudentemente poéticossão apenas os protagonistas do seu livro ou os homens em geral? O título quase faz lembrar os Homens temporariamente sós, dos GNR...
Essa foi uma coincidência que não me tinha ocorrido, mas da qual, entretanto, muita gente me tem falado. Os Homens imprudentemente poéticos são Itaru e Saburo, os protagonistas, vizinhos dentro de uma mundividência miserável, mas deslumbrante, que ambos desprezam e não conseguem evidenciar o deslumbre de que estão rodeados. É uma expressão que - e o título interessa-me exactamente por isso - podemos colher facilmente, para uma aplicação imediata na vida de outra pessoa. Cativa-me muito essa capacidade de os títulos servirem como propostas de linguagem. Como se alguém que, mesmo sem ler a obra, pudesse aproveitá- los para alguma outra coisa. Creio que, em praticamente todos os meus títulos, procuro criar esse tipo de relação onde a expressão do título seja, por si só, uma espécie de obra quase autonomizada.

Para escrever o seu livro anterior, Desumanização, viajou até à Islândia. Desta vez, seguiu para o Japão e visitou a Floresta dos Suicidas, no sopé do Monte Fuji... deixou para trás a portugalidade, enquanto autor e criador?
Diria que não posso abandonar o facto de ser português, mas é uma aventura maravilhosa poder colocar-me no lugar de outro e partir para um livro como quem inaugura uma mentalidade distinta. Como se pudesse ser quase um estreante, porque nada pode ser dado de barato, nada pode ser simplesmente presumido, todas as coisas precisam de ser repensadas e aferidas à luz de um outro modo de estar e de um outro pensamento e isso, para mim, enquanto autor, coloca-me um risco e o desafio de me reinventar tanto quanto possa. É muito interessante para um autor português, que está imerso e foi formado dentro dessa cultura que tem dessa necessidade de chegada ao Mundo, que os meus livros, de repente, se transformem numa espécie de Atlas, lento, ponderado e muito pessoal. É uma forma de criar um "planeta" individual. Posso dizer que não tenho planos de voltar às temáticas de Portugal nos próximos livros. Voltarei, certamente mais tarde, mas este nomadismo está a aliciar-me muito e, por isso, vou prosseguir "emigrado".

No Japão, o acto do suicídio não tem a mesma carga negativa e de pecado que, enquanto ocidentais, lhe damos influenciados por uma sociedade com raízes judaico-cristãs. Quem ainda se recorda das aulas de filosofia grega e do epicurismo, vê algumas semelhanças entre essa atitude nipónica e o estádio da vida de que falavam alguns filósofos, onde nada mais há a experimentar, sendo a morte o passo seguinte na aprendizagem.
Esses filósofos sentiam-se completos e continuar a viver era um cansaço. Já o suicida japonês passa por um processo meditativo. É claro que existirão muitos motivos para a morte auto-infligida mas, na tradição nipónica, o acto do suicida corresponde a uma maturação da relação da pessoa com a valoração que faz da vida e da morte. Tem a ver com a alteração espiritual ou com uma questão de honra e, por isso, o suicídio ocorre como um ritual de extrema dignidade. O estigma que temos na nossa sociedade, que faz com que o suicida seja visto como um falhado, não existe necessariamente na tradição japonesa. O japonês chega ao suicídio como se ele fosse uma espécie de conquista sobre a ideia da morte e não como uma falha ou perda. Nesse aspecto, há uma distinção abissal do nosso “desespero”, embora haja muitos "guerreiros" que tenho sido derrotados se entregam à morte, frustrados e desesperados com o facto de terem falhado, mas não é propriamente uma desistência aquilo que fazem. É uma atribuição de vitória ao inimigo. No Japão, o suicida tem sempre uma dimensão venerável e não será proscrito, mas admirado.

Como encaixou essa dimensão no seu livro? Noutro episódio do livro, Itaru assiste à quase eutanásia da irmã cega, pelos pais. É um cenário de grande tensão...
A maior dificuldade é a disciplina da mão e da materialização das coisas. Precisava de ficar a vigiar palavra a palavra para que aquilo que é dito não caísse na moral judaico-cristã e, por isso, era muito importante que, a cada passo, por mais que a consciência pudesse criar uma impressão decadentista das questões colocadas, era essencial corrigir a mão no momento de escrever e escolher uma palavra que pudesse aludir à morte, mas sem a estigmatizar como alguma coisa que levaria a uma proscrição. No momento da “oficina da escrita do livro”, precisei de estar sempre atento a essa tendência que temos para encarar as coisas de uma determinada forma, para poder fazer com que o livro não tenha a ver com o modo como vejo o mundo, mas com o modo como me parece que os japoneses o vêem.

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