Opinião

A felicidade

27 jun 2024 16:27

A insondável felicidade seria, portanto, uma coisa mágica, por certo muito boa, que me haveria de acontecer um dia

Era ainda criança quando a palavra felicidade se foi fazendo presente como sinónimo de coisa misteriosa, invisível, e carregada da estranheza de ser algo que não se podia ir buscar, comprar, ou esperar que chegasse por conta terceiros ou de acontecimentos grandiosos, antes resultando de umas inexplicáveis pequenas coisas que se iriam juntando para me fazerem feliz; explicava-me a minha Mãe, a propósito da moral inscrita nas histórias que me lia.

A insondável felicidade seria, portanto, uma coisa mágica, por certo muito boa, que me haveria de acontecer um dia, sem que eu pudesse saber antecipadamente quando, como, ou porquê, pensava eu. Estas e outras informações retiradas das conversas que ia ouvindo, eram um puzzle que me parecia difícil de montar e fiquei-me entre a apreensão e a confiança de que o mundo dos adultos, quando eu lá chegasse, haveria de o resolver.

Uns anos mais tarde, a minha noção de felicidade passava por não ter de fazer a cama como deve ser, de arrumar a roupa amontoada na cadeira, de comer sopa de nabos ou tomate recheado, de usar saias de fazenda que me picavam as pernas, ou de ir a festas de anos. Felicidade era ficar enterrada num sofá com um livro, passar horas a ver à janela observando tudo o que acontecesse, ou lanchar refresco de groselha e pão com Tulicreme.

Quando cheguei à idade onde tudo parece ficar ao contrário do que deveria ser, fui infeliz durante uns tempos, coisa comum aos adolescentes mais inquietos e fechados, e cada vez mais longínqua me parecia a tal felicidade das coisas simples e invisíveis, porque tudo o que queria era ser deixada em paz e um amor que me salvasse da incompreensão a que me sentia votada.

Passado o Cabo das Tormentas e devidamente lambidas as feridas, abriu-se o espantoso mundo, do experimentar, do conhecer, do conseguir, o mundo das paixões intensas, da vida vertiginosa, das escolhas, da aventura, e da total responsabilidade pelo caminho a percorrer. Um mundo intensamente feliz, deslumbrado, rápido, próprio dos heróis que somos durante todo o tempo em que somos imortais.

Entendia bem a felicidade daquelas horas cheias, dos acontecimentos em catadupa, dos desafios e das vitórias, e sabia gerir os momentos menos bons e as aflições, dando-lhes o espaço que precisassem, mas não o domínio. Era feliz e sabia-o, mas não atinava com o que fossem as tais coisas pequenas; coisas da Mãe, pensava.

Passaram-se muitos anos e a vida foi mudando; menos agitação e mais trabalho, menos aventura e mais projectos, menos paixão e mais amor, menos experiências e mais construção; e a certeza, absoluta, de ser feliz, mesmo com lágrimas.

A felicidade resultante da liberdade e da plena consciência da vida que se constrói; a felicidade como capacidade de entender, de aproximar, de rir, de criar, e de mudar; a felicidade do prazer de uma viagem de carro, de encher o peito ao olhar um céu de verão, e do sobressalto ao ouvir uma canção. As pequenas coisas da Mãe, portanto.