Opinião
Para que serve a arte; para que serve a expressão artística
Seja qual for a forma de arte, ela faz com que possamos encontrar um caminho para o que somos e sentimos
Numa sociedade altamente mercantilizada, onde o valor atribuído a grande parte das coisas é garantidamente inflacionado e a posse de bens tem um papel significativo, gosto especialmente da definição que diz que a arte “não serve para nada” e que é precisamente essa sua “inutilidade”, ancorada apenas na fruição, que a torna imprescindível ao ser humano.
Talvez por isso seja tão raro que quem vive dela receba um pagamento justo pelo que produz - mas isso são as contas difíceis de um rosário - e é também com certeza por isso que a expressão artística é pouco levada a sério em todos os seus múltiplos aspectos e quase completamente ignorada a sua importância no dizer de si, dos primeiros aos últimos anos de vida - mais contas, de outro rosário.
A arte, a filosofia, e a expressão artística, andam a par, a meu ver, nessa categoria de “inutilidade” fundadora, primordial, do que é serse humano e sem as quais não passaríamos de mais uma espécie animal semelhante a todas as outras.
Virgílio Ferreira considerava que “a arte inscreve no coração do homem o que a vida lhe revelou sem ele saber como”, porque “toda a obra de arte que nos entusiasma é a expressão de um encontro entre o que procurávamos e o que nela viemos a encontrar”. Seja qual for a forma de arte, ela faz com que possamos encontrar um caminho para o que somos e sentimos, deixandonos emocionados, maravilhados, e tantas vezes surpresos com a descoberta desse pedaço de eu que de repente se faz presente.
Do mesmo modo acontece com a expressão artística, possível a todos os que em alguma das suas vertentes a procurem, e capaz de fazer descobrir, sentir, e expressar um mundo interior tantas vezes mantido em silêncios difíceis e limitadores.
É na dança que me movo (passo a redundância) e é com ela que procuro dar-me voz, dando-a também a quem a faz comigo, dos 3 aos 92, de diferentes modos, em diferentes mundos e em diferentes circunstâncias.
Hoje, dia 8, acontecerá o sexto dos oito espectáculos realizados por reclusos da, e na, Prisão/Escola, no âmbito da minha residência artística no Ópera na Prisão – Mozart ON, um dos projectos Partis & Art for Change da Fundação Calouste Gulbenkian.
Será o primeiro feito para público externo, já que os anteriores se destinaram a reclusos, guardas, e pessoal administrativo.
Os oito rapazes que estiveram comigo neste processo de criação fizeram um caminho de que me orgulho, e espero que dele se possam orgulhar também quando chegar a hora de ver e perceber o extraordinário trabalho que fizeram.
Trabalhámos em conjunto, à descoberta do que queríamos dizer e de como seria dito, e creio que foram capazes de o dizer de uma forma bela. Não se podendo ver “de fora” e perceber exactamente o quanto caminharam, descobriram e conseguiram, mesmo quando o desafio era intimidante, espero que quem os for ver dançar os aplauda com entusiasmo, devolvendo-lhes a vénia que eles farão no final.
Sair da Bruma é uma peça que fala do que sentem, do que precisam, do que gostam, e do que querem. Fala de mudar, e de gostar de se ser quem se é. Fala de olhar o outro, de cuidar e de estar próximo. Fala de nós, portanto.