Opinião

Cada um é muita gente: A porteira da minha rua

22 jun 2025 10:10

Só lá passa quem ela deixa passar. Só à noitinha, quando há lua, ela deixa a sua rua e vai-se deitar

A minha rua é pequenina, tem lá pouca gente a morar. E, sendo uma rua pequenina, é fácil encontrar a minha vizinha que lá anda sozinha pela rua a passear. Mora quase ao fundo da rua - ou ao princípio, se olharmos de lá - numa casa baixinha, velhinha e que ainda lá está. À porta, protegida por um estore, muitas plantas pelo chão. Lá dentro, qualquer coisa de amor e uma televisão.

Imagino que ela, a minha vizinha, se senta no sofá ao final do dia a tricotar. A televisão ligada, só para ela não estar sozinha e ter alguém a acompanhar. O marido também lá anda, mas nunca se deixa ficar por ali. Ele sai de casa bem vestido, fato engomado, mãos nos bolsos ao comprido, como se fosse cantar o fado. Sim, ele já esteve por aqui. E ela lá fica na sua cantoria de quase solidão, arrumando e tricotando o dia que lhe vai passando pelo coração.

Quando ela sai, sai devagarinho, sem aleijar. Olha a leste, olha a poente, sente o vento quente e deixa-se levar. A rua é também pequenina para ela que, por ela, caminha toda a manhã. Conhece-a pela janela, cada vaso, cada pedrinha, cada pedacinho de lã que, não sendo, assim parece tal é o jeito que ela, percorrendo, dá aos pés que, no chão batendo, fazem dela guardiã. Ela é como se fosse a porteira daquela rua. Só lá passa quem ela deixa passar.

Só à noitinha, quando há lua, ela deixa a rua da sua rua e vai-se deitar. De noite, passa quem quiser. A minha rua não dorme, mas dorme a mulher. E a noite tem gatos e gente e gente que se parece com gatos e gatos que não são menos do que gente. É a mesma rua, sendo tão diferente.

De manhã, a minha rua só desperta quando a minha vizinha sai pela porta aberta e faz a vistoria. As plantas ainda lá estão. A lua é que não, que já é dia. E há gente a passar, uns miúdos a namorar e gatinhos e passarinhos e carros - só um ou dois.

A minha rua, pela fresquinha, tem sempre a minha vizinha e o fumo adolescente de alguns cigarros. E, depois, quando já não há ninguém ali, a minha rua renasce numa vida diferente. A minha vizinha pouco sorri, mas caminha contente. E anda por ali, como se ela fosse toda a gente.