Opinião

Dicionário improvisado (X)

27 out 2022 16:00

Como se define a normalidade? Talvez seja apenas uma questão de contabilidade. De números. De quantidade

Espelho 
Queria esquecer-se de si. Talvez fosse isso sentir-se livre: ser capaz de se desligar momentaneamente de si próprio, dos seus pensamentos e da sua autoconsciência; ignorar todos os espelhos através dos quais filtrava a sua existência quotidiana. Queria esquecer-se de si, e para isso precisava ignorar os espelhos: apenas estar e ser; sem reflexos. 

Futuro 
Pensa nas pessoas que conheces e amas; pensa nas pessoas que fazem parte da tua vida e não consegues imaginar que algum dia deixem de o fazer; pensa nas pessoas que apenas por existirem – por respirarem e sorrirem, por dizerem “gosto de ti” – dão um sentido à tua vida. Pensa nelas, uma a uma. Quantas irão morrer sozinhas? 

Mahsa 
Cortas o cabelo. E ele volta a crescer. Cortas, e ele cresce. Não há alternativa: mesmo quando é cortado, o cabelo não deixa de existir; e por isso, volta sempre a crescer. Tal como a liberdade.

Mudança 
Encontram-se por acaso na entrada de uma loja. Olham-se por um breve instante e sorriem; mas não são sorrisos felizes. Ele pergunta se está tudo bem e ela responde que sim, desviando o olhar. Não sabem o que mais dizer, não se lembram de nenhuma banalidade ou mentira. Não conseguem voltar a sorrir. Olham-se uma segunda vez, e sabem que esse olhar é uma despedida. Afastam-se, apressados e desconfortáveis. Aliviados por já não sentirem desejo um pelo outro. Nem saudade. 

Obviedade 
Como se define a normalidade? Talvez seja apenas uma questão de contabilidade. De números. De quantidade. Se muitos fazem, é normal; se poucos fazem, é anormal. Tão óbvio. Se a maioria das pessoas abraçasse árvores, isso passaria a ser normal? Se a maioria das pessoas dançasse sempre que a lua estivesse cheia, isso passaria a ser normal? Se a maioria das pessoas falasse com as nuvens que passam por cima das suas cabeças, isso passaria a ser normal? Abraçar árvores, dançar ao luar, falar com nuvens. Coisas bonitas, coisas necessárias, coisas felizes. Que importa a contabilidade? Do lado de lá de cada loucura está a normalidade. Do lado de cá de cada normalidade está a loucura. É apenas uma questão de perspectiva. Ou talvez a loucura seja normal; talvez a normalidade seja apenas um pedaço de loucura disfarçada. Tão óbvio. 

Rotina 
Escolhe a roupa do dia e veste-a. Escolhe os acessórios do dia e coloca-os. Escolhe a maquilhagem do dia e aplica-a. Escolhe o sorriso do dia e usa-o. 

Sentido 
Da minha varanda vejo uma casa que tem um jardim. Nessa casa vivem crianças, que por vezes brincam nesse jardim. Também há cães, que correm e ladram. Todos parecem felizes. Talvez tenham sido as crianças que colocaram num dos cantos do jardim um catavento colorido. Da minha varanda vejo este catavento a rodar. Está sempre a rodar. Nunca pára, movido por um vento contínuo. Roda e roda e roda. Para quê? Todos os dias o olho. Pergunto-me para que serve tanto movimento, qual a utilidade daquele rodar permanente; e penso na minha vida.