Opinião

Dicionário improvisado XXX

26 set 2024 16:14

Será que se esperarmos durante o tempo necessário acabaremos por ouvir uma pedra falar?

Biblioteca
A sala está repleta de prateleiras bonitas, daqueles onde se colocam livros. Mas todas as prateleiras estão vazias; caberiam ali quase 18 mil livros, mas não se vê nenhum. Contudo, ele chama àquela sala a sua biblioteca. Quem o ouve pensa: é doido. Ou de forma mais benigna: entendo, ele deve querer dizer que é uma biblioteca de possibilidades, uma biblioteca em potência. Mas a verdade, que apenas ele conhece, é que aquelas prateleiras não estão vazias; muito pelo contrário, estão a transbordar. Estão ocupadas com as suas memórias, que armazena ali como outras pessoas armazenam livros; e que consulta regularmente, como outras pessoas consultam livros. Claro que se são as suas memórias apenas ele as consegue ver; mas não se importa que digam que é doido. 

Desfasamento
Fazer algo; aguardar cinco minutos; sentir saudades do que se fez cinco minutos atrás. Viver em permanente desfasamento da vida; com atraso.

Desmistificação
As memórias são apenas uma outra forma de pensamento.

Dunning–Kruger
Como nasce o amor? Porque nasce? Para que nasce? Por que motivo se fixa na pessoa A e não na pessoa B ou na pessoa C ou em qualquer outra letra do alfabeto? Em que momento o consciencializamos como sendo amor e quanto tempo se perdeu até chegar esse momento? Durará para sempre? De que modos insondáveis nos transformará? Como foi possível viver sem esse amor? E como poderemos viver após o sempre terminar? Voltará a nascer? Qual será a nova pessoa em que se fixará? Por que razão avançamos pela vida tão cheios de certezas e convicções, tão assertivos e pomposos, quando as perguntas que importam – estas – são impossíveis de responder?

Esquecimento
Uma folha solta-se da árvore, cai ao chão, é arrastada pelo vento. Quanto tempo demorará a esquecer a árvore de que nasceu? 

Origem
Onde estão as raízes de uma folha de árvore? 

Pusilânime
O morto está dentro do caixão, e lá continuará para sempre. À sua volta, entretêm-se a recordar a sua vida, memória após memória. Algumas dessas memórias parecem tão intensas que, por instantes, quem fala tem a ilusão de não estar a recordar mas a viver efectivamente; ali, à frente do morto, que no fundo continua vivo e não sabe.

Relatividade
Será que se esperarmos durante o tempo necessário acabaremos por ouvir uma pedra falar? O que diria, em que língua, com que tom? Garantem os cientistas e os religiosos e os influencers que é impossível uma pedra falar. Mas como poderemos estar certos disso, se não temos a capacidade de esperar o tempo suficiente? O tempo de vida de um cientista ou de um religioso ou de um influencer – os breves noventa anos que todos tanto ambicionam – poderá ser simplesmente o tempo que uma pedra necessita para vencer a sua timidez e dizer: olá.