Opinião

Em defesa do afecto

28 mar 2024 16:03

Dizem-me por vezes que não pareço de Leiria porque a minha costela bairradina me faz quebrar códigos e barreiras sociais facilmente

Se existe uma coisa chamada “mentalidade leiriense”, do que falamos? E como é que mudou nos últimos 30 anos?

Para a Maria Pedro, que veio da Bairrada para Leiria com 4 anos, saiu de cá aos 17 para estudar Bioquímica, e regressou 20 anos depois, alguns traços mantêm-se: “Há uma grande valorização da aparência e de coisas fúteis e superficiais. Mas também sempre houve a coisa boa da curiosidade: as pessoas querem saber mais, ler, ver, experimentar. Foi aqui que, nas décadas de 1980 e 1990, tive contacto com os discos, os livros, a cultura mais urbana que, na adolescência, me marcou muito e abriu mundo. Acho que nunca teria lido filosofia se algumas pessoas com quem eu conversava não me tivessem emprestado livros”.

E o que mudou? “Onde antes havia hábitos de socialização assentes numa espécie de necessidade de afirmação face ao outro, por vezes com uma agressividade disfarçada de piada, hoje vejo que há mais empatia e afecto. As novas gerações são muito mais inclusivas. Leiria era de nichos. Hoje é mais fácil as pessoas conversarem e abrirem-se a outras realidades. E acho que isso tem a ver com a arte, com a nova produção cultural, o trabalho feito no Miguel Franco, a Arquivo, A Porta, o Mimo, tudo coisas que mudaram a cidade”.

Ainda assim, Leiria podia ser mais acolhedora, diz Maria. “Parece existir desconfiança face a quem vem de fora. Somos distantes, culturalmente. Dizem-me por vezes que não pareço de Leiria porque a minha costela bairradina me faz quebrar códigos e barreiras sociais facilmente. Mas pensemos em quem vem de fora e está, aparentemente, adaptado à nossa sociedade, mas por vezes vive numa solidão atroz. Já ganhámos todos mais consciência do problema da solidão dos idosos, ou da necessidade de integração dos refugiados, e isso é bom. Mas e a solidão dos como nós?”

A Maria sorri quando fala das raízes. Do leitão e do espumante. Do pai e da mãe, que são de Águeda e lá se conheceram. Do avô materno, dado a estudos de genealogia, cujo antepassado é o Conde de Sucena “que não era um verdadeiro conde, terá comprado o título aristocrático”, conta-nos, divertida. Do lado do pai, há antepassados italianos: “um mercador chamado Guarino de Verona que fazia trajetórias comerciais e, a dada altura, instalou-se na Península Ibérica. Vi imagens na Wikipédia e é um homem feio, com um grande nariz”.

Ainda nos estamos a rir do nariz do antepassado, quando nos fala da vez em que disparou batatas num concurso de canhões em Winnipeg. Como assim? Ninguém vai a Winnipeg, no Canadá - a não ser que seja uma investigadora visionária a meio de um Doutoramento em Fisiologia, à procura de uma tecnologia muito específica que lhe há-de permitir descobrir e patentear uma hormona produzida pelo nosso fígado, que pode tratar a diabetes. “Gosto muito de perceber o funcionamento do corpo humano: Como bate o teu coração? Como funciona o teu cérebro? Gosto de trabalhar com o sistema nervoso periférico e a parte metabólica, das hormonas e da química da vida”, explica-nos nesta linguagem da ciência que, na boca da Maria, soa a poema.