Opinião

Música | O Caminho

31 jan 2020 20:00

Durante meses, Allen Halloween disponibilizou online canções novas e versões de temas antigos que seriam incluídos no disco Unplugueto.

Uma delas seria, por si só, uma obra-prima: O Meu Par. O cantor dirige-se a uma pessoa, nomeada na primeira versão e referida aqui apenas pela letra “J,” e assume o desejo de fuga para “uma casa num pomar ou junto ao mar.”

O refúgio numa terra idílica imaginária será um tema familiar a quem lide com poesia; como será o trabalho de depuração que transforma uma pessoa na entidade mística a que chamamos musa.

Depois de longa espera, Unplugueto foi editado no final de 2019, e O Meu Par não faz parte do alinhamento.

As razões para deixar a canção de fora revelaram-se dias depois, quando Halloween anunciou que ia deixar a música para se dedicar à religião, alegando não poder “servir dois senhores ao mesmo tempo.”

Intui-se a incompatibilidade entre a arte e a fé pela constante presença do mal nestas canções, como se não fosse possível escrever sem o vangloriar.

As canções descrevem, no entanto, uma alteração progressiva: o mal começa por ser motivo de regozijo, torna-se depois condenável e indesejado, e por fim transforma-se numa força sobrenatural.

Esta mutação faz deste disco uma autobiografia intelectual, a narração de um caminho para Deus.

Na última canção, Assassino, um cabo de polícia encontra o Diabo, que lhe diz: “ou me trazes uma vida ou dá-me a vida e morre.”

Descreve-se depois como esta personagem decide tirar a vida a um ladrão de cobre, “um rapaz com duas filhas” e uma mulher “linda de morte.”

Não deixa de ser curioso que Halloween coloque o Diabo a fazer um ultimato e não o típico acordo quid pro quo, acabando por redimir o polícia quando o põe a afirmar: “agora o Diabo me conduzia.”

O racismo, a mesquinhez e o corporativismo atribuídos à polícia no passado são agora subsumidos pela presença do Diabo, permitindo que o disco acabe com a voz de Halloween a identificar-se, em inglês, com os vilões de outrora: “eu sou mau, sou um polícia.”

Quando as escolhas se reduzem à oposição entre Deus e o Diabo, distinções minuciosas deixam de ser importantes: se não estamos com Deus, estamos com os maus.

O Meu Par não entra nesta lista de canções porque o uso da primeira pessoa sugere há outra entidade que se equivale à figura de Jeová: “eu vou andar, andar / eu vou-te procurar até achar / até o meu coração parar.”

A visão maniqueísta de Halloween coloca assim musas em pé de igualdade com o Diabo; e de tal forma assim é, que até o vídeo desta versão deixou de estar disponível online.

Mas a qualidade destas canções demonstra um erro de percepção: há formas de vida que não cessam quando tiramos a farda.

O poeta que caminha para Jeová nunca será apenas um homem.