Opinião
Na realidade
Aos pessimistas a realidade surge nua e crua, sem suspiros, ou sorrisos parvos, sem arestas limadas, sem romantismo e sem fantasia.
Ninguém quer ter um pessimista por perto. Trazem peso e cansaço à vida, e tentamos repetidamente iluminar-lhes os pensamentos na ânsia de lhes mostrar a luz, de lhes trazer leveza.
Os pessimistas sabem pouco de sonhos, e desconhecem também que a verdadeira realidade não é exactamente a soma dos factos que nos acontecem, mas sim aquela que a efabulação nos ajuda a construir.
Lembramos as férias de Verão, a chegada da família para a noite de consoada, ou um encontro especial, e o que “vemos” chega-nos aumentado pelo efeito que provocam as nossas mais ternas recordações, retocado pelos nossos muito secretos desejos, e abrilhantado pela ânsia, e necessidade, de o reviver.
Vemos o que aconteceu, claro está. Mas vemos também o que na realidade não chegou a acontecer, mas que sem dar por isso inventámos, acrescentando perfeição ao acontecido, e vemos uma versão ligeiramente modificada de alguns momentos que na verdade aconteceram de uma forma um pouco diferente daquela que recordamos.
Não são mentiras, é apenas a realidade a ser alterada pela projecção que nela se faz dos nossos sentimentos, emoções, e expectativas, tornando-a realmente nossa.
É precisamente essa resposta física ao que recordamos - a emoção - que nos dá a capacidade de ir alterando um pouco o acontecido, tornando-o mais nosso, mais precioso e mais útil para a construção do nosso mundo.
Sorrimos ao ouvir uma música que nos leva para um outro tempo e lugar, e recordamo-nos belos, livres, desejados, e admirados; já o pessimista saberá melhor da horrível borbulha que tinha na cara, e terá certezas quanto à fraca impressão causada pela música nova tocada à guitarra.
Descrevemos o último jantar que fizemos para amigos mencionando as gargalhadas, a proximidade, e o vinho perfeito que nos trouxeram para uma noite bonita; ao pessimista antes lembrará a imaculada toalha manchada de vinho, a parca quantidade de entradas que preparou, e a falta inesperada de alguém.
Reflectimos sobre o último trabalho que desenvolvemos e orgulhamo-nos do que conseguimos fazer, pese embora a certeza de que sempre se pode fazer melhor; para o pessimista haverá sobretudo uma lista do que devia ter sido mais bem feito, e outra de tudo quanto não conseguiu fazer.
Recordamos e construímos a realidade olhando-a com os nossos desejos e sonhos, com a nossa benevolência, e com a nossa paixão.
Aos pessimistas a realidade surge nua e crua, sem suspiros, ou sorrisos parvos, sem arestas limadas, sem romantismo e sem fantasia.
As lembranças dos pessimistas estão repletas de “se” e de “mas” num conjunto de maus agoiros e dúvidas que lhes constroem uma realidade densa, difícil e delimitada.
A realidade que fica nas nossas lembranças reflecte a capacidade de nos emocionarmos com o melhor que nos acontece, de efabular sobre o menos agradável em que vamos tropeçando, e de projectar no futuro as sequelas dos melhores capítulos da nossa vida.