Opinião

Palavras tolhidas 

25 abr 2024 16:09

Assisto, impotente, ao renascimento de ideais que contrariam o mais elementar respeito pelo outro

Sinto que as palavras me faltam no dia de hoje. Há cinquenta anos faltaram-me também, sobretudo nas primeiras horas, quando ainda não se sabia que movimento militar era aquele: mais opressivo ainda, ou a revolução com que muitos sonhávamos? Medo, muito medo, primeiro, que nos amordaçassem ainda mais o direito à vida.

Depois, quando a liberdade de todas as cores chegou, nas imagens da TV a preto-e-branco, as palavras fugiram-me do pensamento de novo, não estavam lá para poder dizer do sentir que era um ar com odor de futuro. Já as lágrimas envergonhadas não se fizeram rogadas, salgadas como deve ser o sal da terra.

Passaram cinquenta anos e a vida ofereceu-me três filhos. Quantas vezes a angústia dos intervalos de tempo em que sentia culpa por não os acompanhar tanto quanto devia e lhes era merecido, para entregar o meu tempo a uma causa comum, sim, que as revoluções não são apenas uma data, antes o que se constrói e participa a partir dessa data primeira.

A construção da liberdade é um continuum que não se compadece com horários de expediente. Com eles venho, ainda hoje, a aprender como é viver em liberdade. Por cada coisa que me dizem sentir, pelos pensamentos discutidos, pelas suas práticas no embaraço dos dias, aprendo com eles e por eles a questionar-me, a livrar-me de pré-conceitos, de ideias atávicas e redutoras.

Com os meus filhos que nasceram em liberdade tento ser, dia após dia, um pouco melhor pessoa, e desse modo a cumprir-me na revolução que me devolveu a liberdade. Cinquenta anos após abril e temo por eles. Penitencio-me pelo muito mais que deveria ter feito, acomodado aos dias e ingenuamente crente que ninguém iria, tão pouco tempo passado, reprimir-nos o pensamento, roubar-nos a liberdade conquistada.

Assisto, impotente, ao renascimento de ideais que contrariam o mais elementar respeito pelo outro; ao recrudescer messiânico de fascistas flácidos que mentem sem pudor e que impõem pensamentos e agires sem direito à discussão de quem deles discorda; a propagandistas da mudança que visam tão-somente os seus interesses corporativos; a sub-reptícias decisões que cavam ainda mais fundo o abismo entre uns poucos que detêm tudo para que muitos fiquem sem o mais elementar para a dignidade de sobreviver.

Sinto que as palavras me faltam no dia de hoje. Resta-me acreditar que os meus filhos e os filhos de outros façam o favor de me continuar a ensinar com quantos sentimentos, pensamentos e ações se escreve a palavra Liberdade. 

Texto escrito segundo as Regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990