Opinião
Só para alguns
Apesar da chuva, só queríamos poder sair; apesar do sol, mandava-nos o medo ficar em casa.
Meses atrás, a nossa vida entrava de repente no que até então víamos acontecer apenas nos filmes, e nós, perplexos, assustados, e disponíveis para fazer o que fosse preciso, fizemos o que nos disseram para fazer.
Não sabíamos nem o quê, nem o como, nem o quando, e tudo o que queríamos era chegar ao último dia, fosse ele quando fosse, sem que nenhum dos nossos faltasse.
Vivíamos suspensos das palavras dos que se desdobravam a adivinhar, a prever, a calcular, e a decidir os nossos passos, no escuro – nós e eles -, e cumpríamos a nossa parte fazendo do modo como nos diziam para fazer.
Aguentámos firmes a suspensão, ou o lento desfazer, dos projectos pensados para o ano que ainda mal começara, aguentámos a perda de receitas, aguentámos o isolamento, e aguentámos a distância dos nossos, que se tornava desmesurada à medida do aumentar dos dias, das notícias, e da aflição.
Apesar da chuva, só queríamos poder sair; apesar do sol, mandava-nos o medo ficar em casa.
E Junho chegou, e com ele uma pequena abertura, um respirar mais leve, uma possibilidade de reencontros e, para quem a inactividade tinha sido obrigatória, a alegria de, aos poucos, poder voltar a aprender, e a trabalhar, outra vez. Tudo difícil, tudo controlado, tudo vigiado, tudo medroso, mas sim, a vida voltava aos poucos ao seu lugar.
E com o tempo desvaneceu-se a perplexidade; e com o Verão foi-se parte do susto; e com as férias foi desaparecendo a disponibilidade para fazermos o que nos dissessem ser preciso fazer.
E depois, regressados à escola, ao trabalho, a algum lazer, e à rua, desacreditámos do perigo e quisemos tomar a nossa vida de volta, numa atitude desafiadora de adolescente revoltado com o que tem de ser.
E quisemos festas e jantares e saídas em grupo.
Argumentamos os nossos direitos e discutimos as razões, e a razão, dos mesmos que no começo ouvíamos, e decidimos que pensam mal, que já não sabem.
E inventamos teorias que sustentam a nossa vontade de ter uma vida igual à que já foi, como se o que nos atacou tivesse já desaparecido, ou perdido a força, ou deixado de importar.
E invocamos a liberdade de não nos protegermos, de não nos restringirmos: de não usarmos uma máscara e de não nos mantermos afastados uns dos outros. Ignorantes de que não é a nós que protegemos, é ao outro.
Ignorantes do que significa não sermos nós protegidos pelo outro.
Ignorantes da má consciência que advirá (?) de termos sido veículo para o mal do outro.
Ignorantes no lugar comum de o mal só acontecer aos outros. Ignorantes do bem comum. Ignorantes do unir esforços.
Absolutamente ignorantes do que significa Liberdade.