Opinião
Um Presépio efémero na natalândia
A arte de contar histórias está a definhar, perdendo-se com ela, sabedoria e carácter identitário
Vivemos no tempo de um Deus incerto, coagidos por uma sociedade impenitente e (des)governados pela impertinência, enredados na profunda alienação. Manuel António Pina afirmava que «tal como a infância, o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos». Quando a vida era, ela própria, uma narração com força primitiva, imbuída de gravitação, segredo e magia, havia o vínculo espiritual ao sentido da celebração.
A religião é uma narrativa dotada de ideário e ética intrínsecos, o que compreende todos os ângulos da vida, unindo-nos a significados e símbolos. Quando a cidade celebra o cortejo natalício com paradas e fogo de artifício em Novembro, iluminação, recreio de duendes, comboios, rampas e pistas de gelo ou renas na quitanda até ao carrossel de Janeiro, não há ritual na festividade. Anula-se o simbolismo da alegoria, enquanto sublimação do sentimento genuíno e arquétipo da alma. Apenas existe consumo, euforia, ilusão, delírio.
Em breve, o presépio será esquecido e as suas figuras alusivas, serão alvo de metamorfose: no lugar de José, talvez um Donald Trump; ao seu lado, no lugar da virgem Maria, uma imaculada Taylor Swift; e na manjedoura um unicórnio ou a bitcoin. Talvez em lugar do burro surja um pinguim e no da vaca, a rena Rodolfo.
A ausência de comunicação enquanto sedimentação de valores, conduz ao abandono da narração empática e dos seus vínculos. O espírito narrativo sufoca na torrente de estímulos consumistas e sedutores. É a voracidade do imediatismo desprovida de depuração – post, like, story. Toda a experiência pressupõe legado e significado.
A arte de contar histórias está a definhar, perdendo-se com ela, sabedoria e carácter identitário. «Quando somos crianças, o Natal é próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade», afirmou Manuel António Pina.
A experiência regula a vida, conferindo-lhe um carácter narrável. Quando esta desaparece, nada existe de vinculativo. Vive- -se o extemporâneo, desbaratando o património da humanidade sob a pressuposta crença no progresso. A felicidade possui um fio que provém do passado, exercendo acção no presente e ressuscitando o futuro. O Natal prolonga o fio da tradição.
Porque o mundo carece de uma estrutura rítmica, imaginário colectivo, espiritual e divino, como uma necessidade existencial. «O presépio somos nós. É dentro de nós que Jesus nasce» (José Tolentino Mendonça).