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A piação do Ninhou, o laínte da Casconha e a gíria dos porqueiros
Património imaterial | A piação ou minderico é uma “língua individual, autónoma e viva”, o laínte da Casconha procura o mesmo reconhecimento e o linguajar dos porqueiros da Boa Vista busca apenas não desaparecer para sempre. São três “falares” que ajudaram a forjar o nosso território
Na região, há modos de falar ancestrais, verdadeiros códigos herméticos apenas compreensíveis aos iniciados, que foram, durante anos, alternativas ao português padrão. No nordeste do distrito de Leiria, nos concelhos de Castanheira de Pera e de Figueiró dos Vinhos, o “laínte da Casconha” - literalmente o “latim de Castanheira de Pera”, numa tradução directa - e a gíria dos porqueiros da Boa Vista, a poucos quilómetros a norte de Leiria, são vestígios de uma identidade ligada à terra e aos ofícios tradicionais, mas estão a definhar.
São sinais que contrastam com a segunda vida que o minderico recebeu nos últimos anos, após, em 2011, ser reconhecido como verdadeira “língua individual, autónoma e viva”. Ainda hoje é falado na bacia do polje de Mira-Minde.
“Tanto o laínte como a gíria dos porqueiros - evitamos utilizar o termo ‘calão’, por ser depreciativo - são socioletos ligadas a grupos socio-profissionais. Têm duração curta e são usados, essencialmente, pelas pessoas de uma área profissional. Em Castanheira de Pera e Figueiró, foram-no pelos comerciantes do têxtil, na Boa Vista, pelos porqueiros”, explica Vera Ferreira, linguista documental, arquivista digital no SOAS - Instituto de Línguas Mundiais da Universidade de Londres, e co-autora do Dicionário Bilingue Piação-Português (minderico-português).
A “piação dos charales do Ninhou” ou minderico é uma língua ameaçada falada em Minde (Alcanena) e Mira de Aire (Porto de Mós), por uma comunidade de cerca de 150 falantes activos e mil falantes passivos.
Durante anos, pensou-se que teria raízes num socioleto, porém, a investigação de Vera e dos seus colegas abriram outra possibilidade apaixonante, marcada pela geografia local, que potenciou o isolamento da população no meio das fragas das Serras de Aire, de Candeeiros e de Santo António.
Exemplo do minderico
1 - Entrega as mantas ao homem porque Deus não dorme.
2 - O homem dá quinhentos escudos por uma manta.
Piação
1 - Jorda as meníseas ao terraisinho porque o grande juíz não tarranta.
2 - O terraisinho jorda cinco cédulas por uma menísea.
A equipa identificou uma génese que pode ser traçada até ao português arcaico, dos séculos XII e XIII, bem como vocabulário de origem árabe e estrutura moçárabe.
O estabelecimento da manufactura de mantas na região, nos séculos XVI e XVII, pode ter potenciado a expansão da piação à Serra de Santo António, onde havia produção de lã, embora hoje, só restem as memórias de pessoas que terão falado minderico, naquele planalto.
“Existem termos no minderico, mais antigos do que os séculos XVI e XVII, o que nos leva a pensar que já existiria antes”, revela Vera Ferreira. Entre as curiosidades que marcam esta língua são as diferenças entre o que é falado em Mira de Aire e o que é em Minde.
“É qualquer coisa como o português do Porto e o do Algarve. Há termos diferentes, mas inteligíveis.”
O que leva a piação a ser considerada como língua é o facto de ainda existir uma comunidade, fora de um grupo socio-profissional, que a fala, embora os falantes sejam cada vez menos e mais idosos.
A mais jovem falante de minderico tem 50 anos.
Mas Vera e os defensores desta língua estão optimistas porque após o lançamento do Dicionário Bilingue Piação-Português e da atenção nacional de que, recentemente, o minderico foi alvo, a comunidade percebeu que, afinal, aquele era um tesouro só seu.
Até aí, muitos mostravam-se envergonhados, quando se mencionava a língua local. “Estava muito viva a ideia de que só quem vendia nas feiras, não tinha instrução nem cultura, a falava.” O sentimento hoje, é de orgulho por este património e, entretanto, foi dada formação a professores e houve aulas na escola preparatória de Minde.
Provavelmente, o minderico não deixará de ser uma língua ameaçada, mas, pelo menos, passou a ser motivo de orgulho em Mira de Aire e em Minde.
Exemplo do laínte
Latiqueiro 1: Ó meu, repara no freguês, traz muito
dinheiro na algibeira.
Latiqueiro 2: Sim meu, estou a vê-lo.
Latiqueiro 1: Aqui o freguês é alfaiate e quer
comprar muitos tecidos.
Latiqueiro 2: Sim amigo, eu tenho muita fazenda,
vamos lá vender-lhas.
Laínte da Casconha
Latiqueiro 1: Ó meu, pidonha o fragato, astra
timum de gardelo na aljabra do tofa
Latiqueiro 2: Insara meu; cames pidonha o leio.
Latiqueiro 1: Aquimes o fragato verse alcatrefo e
aréque carmar timum de faiarra.
Latiqueiro 2: Insara adegumo, cames adota timum
de catraia, jordamos verdunhar-lhe as faiarras.
“Aquimes, na Casconha, larfava-se laínte”
Domingos Alves, nascido e criado em Castanheira de Pera, reivindica ser a única pessoa viva que ainda sabe falar o laínte. Fez uma extensa recolha do léxico e gramática deste modo de falar, há mais de 20 anos, quando ainda havia quem o conhecesse por dentro.
Será uma língua, um linguajar, uma gíria ou um código? A discussão continua em aberto, mas Alves propõe o termo “linguagem paralela”. É com tristeza na voz que fala desta marca, cada vez mais esquecida, de património imaterial da ponta norte do distrito.
“Aquimes, na Casconha, larfavase laínte”; aqui, na Castanheira, fala-se laínte.
Uma das características mais curiosas é que, inicialmente, não era empregado no território de Castanheira de Pera e de Figueiró dos Vinhos, mas nos mercados fora da região, pelos comerciantes de produtos têxteis, os latiqueiros, para combinar negócios e até para se defenderem.
Entre a segunda metade do século XIX e início do XX, após uma vaga de emigração para o Brasil, alguns dos habitantes que regressaram viram nos têxteis uma hipótese para multiplicar o dinheiro arduamente ganho por terras de Vera Cruz e estabeleceram unidades de produção junto à ribeira de Pera.
Para escoar a produção, muitos abandonaram a magra agricultura de subsistência e aventuraram-se no negócio da venda de têxteis. Porém, a mudança trazia situações que era preciso acautelar.
“Acontecia o comprador pôr em concorrência vendedores oriundos do mesmo local e muitas das vezes com os artigos da mesma fábrica. Os latiqueiros, identificando esta circunstância e na posse de um instrumento que, originalmente, surgiu como estratégia de defesa, decidem passar a utilizá-lo para maximizar os lucros e combinarem, entre eles, o preço a praticar a cada freguês”, explica Domingos Alves.
Alargam e adaptam o vocabulário, elaboram técnicas que permitem o desenvolvimento dessa linguagem e é assim que, num qualquer mercado do País, seria possível ouvir tal “linguagem alternativa”.
“Assim nasce o laínte da Casconha, sendo que a palavra laínte é uma transformação do termo latim.” Mais tarde, apareceu, pelo menos, uma pequena comunidade, na aldeia de Fontão Fundeiro, onde muitos o falavam ou, não falando, o entendiam.
Já no declínio do laínte, a noção de que se tratava de algo que só poderia ser partilhado entre os comerciantes desapareceu. “Para estas pessoas, o laínte deixou de ser hermético e começaram a ensiná-lo às suas famílias.”
Foi assim que esta aldeia da freguesia de Campelo, concelho de Figueiró dos Vinhos, sem saber, criou a última condição para que se pudesse aventar a possibilidade de considerar o laínte como língua. Isto é, deu-lhe uma comunidade de falantes.
Mas a história não ficou por aqui e extravasou os limites da antiga comarca. Com o declínio da actividade dos caixeiros-viajantes, algumas famílias de Fontão Fundeiro saíram da terra em busca de uma vida melhor e levaram com elas o laínte.
Fixaram-se em Sacavém, criando os ferro-velhos locais. E a gíria, o socioleto ou língua dos comerciantes da Casconha passou a ser a dos sucateiros. “Foi com eles, entre os mais velhos, que consegui recolher muita coisa “, recorda Domingos Alves.
Um resumo sobre o laínte e parte do trabalho de recolha poderá ser lido num dos próximos Cadernos Leirienses. A sistematização, essa ficará para mais tarde, para quando o investigador tiver tempo. “Será um trabalho para a reforma”, prevê.
“Ó manêgo! Faina-me grunho pechaltinho e baio do baril”
Mais a sul, a meros cinco quilómetros a norte de Leiria, há uma freguesia que, actualmente, é conhecida pelo seu leitão assado, um acepipe que, por fim, está a merecer a atenção devida, com a criação de uma marca local.
O “leitão assado à moda da Boa Vista” é o resultado de uma intensa actividade no comércio de porcos, que eram trazidos, bastas vezes, a pé, de todo o País, por negociantes naturais da freguesia e dos lugares vizinhos.
Mais uma vez, foi preciso criar um código que fosse hermético e apenas conhecido de quem tinha sido iniciado.
O que se torna imediatamente evidente, quando se compara o laínte à gíria ou socioleto dos porqueiros da Boa Vista - este é reconhecido, pelos falantes, como tal -, é a semelhança entre muitos termos, em especial os verbos.
Aqui, tal como em Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, a ausência de interesse em preservar este património imaterial, e a queda em desuso pelas gerações mais novas, pouco alertas para a questão da identidade, coloca-o em risco, restando uma mão-cheia de falantes e um número ligeiramente superior de pessoas que ainda o entendem, não o falando.
Foram feitas algumas recolhas nos anos 80 e a Junta de Freguesia e o rancho locais tentaram preservar o que o tempo e a morte dos negociantes foi apagando da face da terra.
Hoje, além de alguns documentos dispersos, há a possibilidade de consultar num blogue alguns termos dessa gíria, que, já neste século, chegou a ser utilizada para comunicar entre grupos de jovens da freguesia, sempre que havia uma zaragata nas discotecas da Praia do Pedrógão ou da Marinha Grande, retomando, aliás, o seu uso ancestral, quando um negócio corria mal e era resolvido com uma sessão de jogo do pau, seguida de uma “malha de cachaporra”.
“A Junta de Freguesia fez uma recolha de léxico, mas como não há um registo escrito mais antigo, a morte dos falantes está a precipitar a sua perda”, reconhece o presidente da União de Freguesias da Santa Eufémia e Boa Vista.
Mário Rodrigues explica haver a intenção de criar uma página ou forum, em suporte digital, onde as conversas serão todas utilizando os termos do socioleto dos porqueiros, evitando que se perca e até recolhendo novos contributos lexicais.
Até lá, se passar pela Boa Vista, experimente sentar-se à mesa de um dos restaurantes locais e pedir ao “manêgo” que o servir que lhe traga “grunho pechaltinho” [leitão], para “suquir” [comer], e “baio do baril” [vinho do bom].
Ele saberá o que lhe está a encomendar.