Sociedade
Eunice Neves vive há semanas com o fogo à porta
Pelos menos duas vezes por semana, o ritual da investigadora a viver na Austrália repete-se. Vestem-se roupas não inflamáveis, prepara-se a casa e o jardim, enchem-se baldes com água, colocam-se, prontas para entrar em acção, esfregonas e vassouras para limpar a mais pequena fagulha que caia perto das habitações.
Nos carros, enfiam-se as malas, os animais, os álbuns de fotografias e outras preciosidades e aguarda-se, com o coração nas mãos, que o fogo aligeire caminho para outro destino.
Caso contrário, a ordem é para deixar tudo para trás e seguir pelas rotas de fuga, sem olhar para trás. A lição está bem estudada.
“Não estou em perigo, mas é assustador”, conta Eunice Neves, investigadora em Design de Permacultura, natural de Leiria e a residir na zona das Blue Mountains, na Nova Gales do Sul, Austrália, onde tem enfrentado um quotidiano marcado por enormes fogos que têm reclamado vidas humanas, consumido animais, florestas, casas e pequenas cidades à sua passagem.
Este é um dos relatos recolhidos pelo JORNAL DE LEIRIA junto de pessoas da região a viver este momento.
Há dois meses, após uma estada em Leiria, aterrou naquele país, no dia em que foi decretado Perigo de Fogo Catastrófico, pelo Governo. O calor extremo e os ventos fortes congeminam com a flora local para criar um cenário próprio de uma alegoria de Dante.
Desde há semanas, o quotidiano das aldeias e vilas das zonas afectadas é feito a olhar para os alertas da App da Protecção Civil local, que mostra as áreas em risco. “Hoje, há dois incêndios próximos, que, desde há duas semanas, estão controlados e um outro, descontrolado, a vir do Sul.”
“O fogo neste tipo de floresta não é possível de combater, mesmo com uma grande quantidade de meios no terreno e aéreos Aquele aviões enormes que parecem de passageiros, mas que são tanques. O que os bombeiros fazem, muitas vezes, são contra-fogos de contenção”, explica. A jovem afirma que se percebe claramente que as pessoas puseram todas as suas desavenças para trás e entreajudam-se, sempre que a necessidade o dita.
Portugal importou uma espécie de eucalipto, aqui há mais de 600
A Austrália é o local de origem de uma espécie vegetal que tem contribuído muito para o agudizar o problema dos incêndios em área florestal em Portugal, pelo que, o cenário não é de completa surpresa, para Eunice.
“As florestas aqui são de eucaliptos e há mais de 600 espécies. Para Portugal, só importámos uma. São altamente inflamáveis, devido ao óleo das suas folhas e cascas secas que, em conjunto com a seca que o continente está a viver, a má gestão do território, a agricultura insustentável que abandonou as práticas tradicionais dos aborígenes, o vento forte e as temperaturas altas levam a que haja muitos fogos por simples ignição natural”, diz a investigadora, ressalvando que também há fogos de origem humana.
“Origem humana não quer dizer origem com intenção criminosa. Quer dizer que uma acção humana, como uma simples limpeza de terreno com uma máquina, os ateou.” E depois há o factor natureza.
Dada a natureza da floresta e das espécies vegetais que as povoam, estão a ser registados, tal como aconteceu em Pedrógão Grande, acendimentos a distâncias de dez e 15 quilómetros do local onde os fogos se iniciam, pela projecção de material em combustão pela atmosfera, auxiliada pelos ventos fortes.
Nas últimas semanas, a qualidade do ar tem estado tão má, devido ao fumo e cinza que, conta, há dias em que não sai de casa. “E outros em que temos de utilizar máscara.”
Beija-flor a lutar contra o fogo
Por cima da cabeça de Eunice, os helicópteros sobrevoam, carregados com milhares de litros de águapara ajudar as forças de combate ao fogo no terreno. Mas não é suficiente. Nada parece suficiente. “A imagem que me vem à cabeça é como se fosse um pequeno beija-flor, a bater as asas sem parar, a tentar apagar o fogo.”
As autarquias locais, semelhantes às nossas Juntas de Freguesia, têm organizado sessões de esclarecimento com o intuito de informar sobre o que fazer antes, durante e depois de se ser afectado pelo fogo. “Portugal tem muito que aprender com a Austrália, precisamente, antes e após os fogos.”
Desde 2015 que a sua vida é um vaivém entre Portugal e a Austrália mas, desde há três anos, que vive e trabalha no país, pesquisando “formas de existência sustentável, num planeta que tem recursos escassos e finitos e que não permite o actual paradigma de crescimento e exploração desenfreados e infinitos”.
A investigadora mete o dedo na ferida da alteração climática e diz “o que está a acontecer na Austrália pode acontecer em Portugal e é o resultado de práticas humanas insustentáveis”, afirma, explicando que lá, tal como cá, há falta de pessoas a gerir as florestas.
No entanto, “gerir” não é fazer limpezas e cortes radicais, sem qualquer compreensão daquilo que é uma floresta, como se aplicou em Portugal. Essa é, entende, uma emenda pior do que o soneto.
“Na Austrália ignoraram o conhecimento dos indígenas e a sua gestão do território. O mesmo aconteceu no Pinhal de Leiria, onde as pessoas usavam todos os recursos disponíveis, deixando a floresta limpa. Hoje, apenas se arrasa a biodiversidade.”
Após os fogos de 2017, que destruíram a quase totalidade da Mata Nacional no Litoral Centro de Portugal, percebeu que havia falta de conhecimento para gerir o surgimento explosivo e descontrolado de espécies exóticas que beneficiam com o fogo, tais como a mimosa que é oriunda da Austrália.
“O Governo australiano vai dar conta de que tem o mesmo problema, muito rapidamente.”
Lá fora, o sol desaba com o peso de uma bigorna sobre o solo da terra ancestral dos aborígenes, dos cangurus, dos coalas e de tantas outras espécies únicas.
Ao mesmo tempo, o calor faz crescer, não apenas o nível do mercúrio no termómetro, mas também o aperto no peito de Eunice.
No continente austral, hoje não há nada de novo.