Viver

Nós (na)moramos os livros!

1 mar 2018 00:00

Biblioterapia | Os utentes seniores do lar da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, juntam-se mensalmente em tertúlia na livraria Arquivo para, do alto dos seus muitos anos de sapiência, falarem da actualidade.

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Jacinto Silva Duro

"Os jovens de hoje gostam do luxo. São mal comportados, desprezam a autoridade. Não têm respeito pelos mais velhos e passam o tempo a falar em vez de trabalhar. Não se levantam quando um adulto chega. Contradizem os pais, apresentam-se em sociedade com enfeitos estranhos. Apressam- se a ir para a mesa e comem os acepipes, cruzam as pernas e tiranizam os seus mestres."

A frase poder-se-ia ouvir em qualquer conversa de café, em qualquer café de Portugal. É o exercício típico de uma geração que fala (mal) da outra, destacando os defeitos dos mais jovens. Porém, estas palavras foram proferidas há mais de 2400 anos, pelo filósofo grego Sócrates e plasmadas pelo discípulo Platão.

De lá para cá, aparentemente, muitas coisas permanecem iguais e foi essa uma das conclusão da turma de seniores da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, que participa, todos os meses, na iniciativa (Na)morar com livros, sessão de biblioterapia, que se realiza na livraria Arquivo, em Leiria.

Na sessão da semana passada, o tema da tertúlia foi o ensino no tempo do Estado Novo e as modificações na sociedade, e nos jovens, desde os tempos da ditadura. "Quando andávamos na escola, havia sempre dois retratos grandes nas salas de aula: Salazar, o presidente do Conselho, e Carmona, o Presidente da República."

"E porquê?", questionou, em voz alta e projectada, Ricardo Crispim, que é conhecido por todos como "doutor Ricardo" e tem a tarefa de conduzir a tertúlia. A resposta, surge e quase em uníssono: "porque eram os chefes. Porque eram as autoridades."

“As duas figuras de proa eram um ‘acentuar das razões políticas que estavam ainda a ser embrionadas’", sublinhou Emiliano, 87 anos, adiantando que a implantação da República e de um poder laico havia acontecido poucas décadas antes.

O antigo chefe de Secretaria da Câmara de Leiria, que ainda pratica, sempre que pode, a sua paixão por livros, artes, fotografia e pintura, recordou histórias de sacerdotes que, na I República, fugiam das suas paróquias, escondidos em carroças, debaixo de lixo.

Na livraria, rodeados de estantes onde moram palavras de pensadores, artistas e políticos como Curchill, Paula Rego, Papa Francisco, Borges, Lenine ou Kissinger, ficou, no ar, outra ideia.

De dedo no ar como se fazia nas salas de aula de outros tempos, o senhor Manuel, de 95 anos, avançou uma explicação: "quando temos pessoas importantes nas nossas famílias também temos as suas fotografias em casa. Por isso, ter aquela imagens na sala de aula, era símbolo do respeito pelas pessoas."

"E agora? Fará sentido ter as fotografias dos governantes nas salas de aula?", lançou para a conversa Ricardo Crispim, que ostenta, ao peito, um coração rubro e uma coruja em tons de verde, em peluche, em fundo de bata branca. Após um pequeno debate entre si, alguns idosos dizem que "não", tal como não faz sentido "ter crucifixos" nas paredes.

No (Na)morar com livros, a conversa comporta-se como no ditado popular. É como as cerejas, flui, contempla-se, demora-se nas bocas e nos ouvidos

"Em termos pedagógicos, a escola está pior do que nos anos 40-60", assegura Manuel, que foi técnico de contas, e dá exemplos pela sua cartilha: "hoje, um aluno do 10.º ano nem sequer sabe quantos são 4x5! É uma tristeza", lamentou, concluindo que "é uma falha da escola", porque "os professores não têm poderes" e não há "disciplina rigorosa" dentro das escolas. "Há pais que vão às escolas para agredir os professores física e moralmente." No (Na)morar com livros, a conversa comporta-se como no ditado popular. É como as cerejas, flui, contempla-se, demora-se nas bocas e nos ouvidos. 

Com fotografias da escola de antigamente nas mãos, o debate caminhou com a rapidez e determinação de um felino para a questão da tolerância para com outras nacionalidade e credos. "É utópico comparar os dias de hoje, com há 30 ou 40 anos. As ideias de hoje são, para nós que estudámos há todos esses anos, aberrantes", fez notar Emiliano.

Maria Evete, 80 anos, afirmou que, por força da evolução constante da sociedade, houve uma “adaptação moderada que tentou manter tudo em harmonia”. E a maior diferença? "O professor não é respeitado", lançou Agostinho, do alto dos seus mais de 90 anos.

Todos concordaram: actualmente, a figura do professor deixou de ser alguém que, pela sua posição e função, era admirado e respeitado. O idoso aproveitou a oportunidade para sublinhar que há uma ausência de harmonia entre educação e família. Deolinda, 91 anos, desenrolou o novelo de sabedoria para dizer que é preciso falar nestas coisas com moderação.

Afinal, "nem todos os jovens enfiam a carapuça". De seguida o grupo lançou-se na azáfama de tentar perceber as razões de semelhante estado das coisas. "Há falta de respeito e demasiada liberdade. Os jovens pensam que têm liberdade misturada com autoridade. Apossassam-se e não há quem os possa vencer."

Sentada na sua cadeira, Idalina, 93 anos, assume a forma de uma frágil e delicada senhora com face de finos traços. Mas as aparências… Sente crescer-lhe no peito a vontade de falar, até que já não se consegue mais conter: "Eu era da Gala, ao lado da Figueira da Foz e tenho um filho de 70 anos que é engenheiro químico. E o meu pai era pescador", lança.

Após o aviso sério à navegação, mentalmente, de mangas arregaçadas, dirige as suas palavras para o tema a debate: "há pais que deixam os filhos fazer tudo o que querem. Eu criei os meus, mas nunca deixei que isso acontecesse. Quando o meu filho dizia que ia fazer isto e aquilo, eu respondia que 'não'... 'mas ó mãezinha!', dizia ele.

E eu: 'não há mãezinha, que a gente zanga-se!' É preciso pulso!'"

Nas escolas e famílias decide-se o futuro da Humanidade
Para desbloquear ou refrear a conversa, Ricardo Crispim lançou mão de

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