Opinião
25 de abril de 1974, sempre!
A realidade impôs-se-me e era feita das perseguições aos opositores do regime, da censura a todos os textos que beliscavam a vida da ditadura
Nas primeiras horas da madrugada daquele dia a gritaria contra os esbirros da PIDE acordou-nos a todas! Após breves momentos o meu quarto, o mais bem localizado para se observar a fachada do prédio de onde chegava aquela gritaria, encheu-se de raparigas que, tal como eu, vindas de outras terras, eram estudantes universitárias em Coimbra. Aflitas, em pânico, debruçadas, quase a cair da janela, a esbracejar e a emitir chius altíssimos, tudo fizemos para calar o nosso vizinho, mas qual quê! Ele não só não se calava como os insultos contra a tal gentinha iam subindo de tom.
Inicialmente, pensámos que ele, um conhecido psiquiatra antifascista, estivesse animado pelo consumo exagerado de uma qualquer substância e se tivesse esquecido das consequências terríveis desse seu agir, mas, rapidamente, percebemos a improbabilidade de tal coisa. De facto, como poderia alguém, já tão magoado na sua vida por lutar contra a terrível ditadura que amarfanhava Portugal, agir de forma tão leviana? Percebemos então que algo de muito importante se estava a passar e apressámo-nos a ligar as telefonias que tínhamos sintonizando-as em todas as rádios possíveis.
Adivinhando que era pela liberdade e contra a opressora ditadura que um confronto estava a acontecer em Portugal, não mais dormimos nessa noite! Pela minha parte, após ouvir o primeiro comunicado do MFA– “Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas (…) - invadiu-me um misto de medo e esperança e lembro-me bem que foi nesse momento que decidi em qual dos lados da barricada eu estaria, caso as coisas corressem mal aos bravos do MFA.
E foi assim, feliz, que entrei no café Ritz e senti pela primeira vez o orgulho de ser portuguesa! O outro, aquele orgulho que a ditadura me quis impor na escola através da “exaltação de valores tradicionais resgatados de um passado mítico português” nunca o senti. O que ouvia ao meu pai, o que lia nos livros, a tristeza, o sofrimento e a vida desgraçada que à minha volta via tantos trabalhadores levarem, fizeram-me desde muito garota perceber que era mentira tudo o que, na escola, me ensinavam sobre o meu país.
A realidade impôs-se-me e era feita das perseguições aos opositores do regime, da censura a todos os textos que beliscavam a vida da ditadura, da patética defesa do colonialismo e do ameaçador lema, para qualquer espírito livre, “Deus, pátria, família”. E foi assim que de braços abertos eu acolhi aquele 25 de abril de 1974 e até hoje o celebro com emoção.
Não me peçam, por isso, para aceitar nem que sejam fragmentos soltos da tal exaltação de valores tradicionais resgatados de um passado mítico português. Como cidadã, sei que nasci nesse dia e só ele me permitiu crescer livre. Sei, por isso, que é aos militares de abril e aos homens e mulheres da esquerda portuguesa a quem, todos os dias, devo agradecer e que aos outros nada devo.
E tenho um desejo! Tal como as tribos que vivem próximas do Polo Norte cuidam da natureza para que ela não se estrague até à sétima geração, assim estou eu com o 25 de Abril de 1974. Quero cuidar dele para que ele, geração após geração, fique sempre!