Opinião

Não

13 ago 2020 09:47

Quero ser capaz de acreditar que estou sozinho, quero ser capaz de esquecer que estão outras pessoas à minha beira.

Estava no autocarro do costume, à hora do costume, a fazer o trajecto do costume; no banco do costume, a olhar pela janela do costume, a ver deslizar a paisagem do costume; entretida com os pensamentos do costume.

Não me lembro que pensamentos eram, às vezes parece que estou sempre a ter os mesmos pensamentos, todos indistinguíveis entre si; como se na verdade existisse um pensamento único que precisa ser repensando vez após vez, numa espécie de tentativa contínua em lhe encontrar alguma brecha; como se os pensamentos fossem, afinal, problemas matemáticos ou filosóficos com soluções iminentes; puzzles.

Será o pensamento um puzzle?

Enfim, não importa. Lá ia eu no autocarro, a olhar pela janela. Nunca olho para o interior do autocarro para que o meu olhar não se cruze com o das outras pessoas; porque também não quero que as outras pessoas me olhem.

Quero ser capaz de acreditar que estou sozinho, quero ser capaz de esquecer que estão outras pessoas à minha beira. Talvez isto pareça um bocado egoísta ou cruel; mas e se disser que é uma questão de respeito?

Não quero olhar para pessoas que não conheço e sentir que me são indiferentes, não quero correr o risco de não ser capaz de me interessar por elas; não quero olhar para uma pessoa e não sentir curiosidade sobre ela. Portanto, não corro o risco. Não olho.

Refugio-me na janela. Afinal é para isso que as janelas servem, para nos proporcionarem intervalos de nós mesmos. Fugas. Refúgios. Distracções.

Estava distraído a olhar pela janela quando senti que alguém se sentou ao meu lado. Não reagi, mantive o olhar ocupado, a mente ocupada.

Sentia a sua presença, ouvia a sua respiração. Mas mantinha o olhar na janela, no deslizar do mundo que ocorria lá fora; o mundo está sempre a deslizar fora de nós, além de nós; independente de nós. Talvez o mundo se preocupe apenas em deslizar, indiferente a quem o acompanha. E foi então que me tocaram.

A pessoa que se sentara ao meu lado tocou-me na perna; um toque propositado, para me chamar a atenção. Estremeci. Primeiro o corpo, depois o espírito.

Como numa tempestade, primeiro vem a luz e só depois o som. Obriguei-me a desviar o olhar da janela e a encarar a pessoa que estava ao meu lado.

O autocarro prosseguia a sua marcha; talvez os autocarros sejam mais sábios do que as pessoas, pois conhecem sempre o seu destino, sabem para onde se dirigem. Era uma adolescente e sorria para mim.

Quando os nossos olhares se cruzaram, disse: «Posso fazer-lhe uma pergunta?»

Não aguardou uma resposta, não deixou de sorrir. Fez a sua pergunta: «Já fez alguém feliz hoje?»

Manteve o sorriso, não desviou o olhar. Como se me tivesse acabado de perguntar se não achava que estava calor. Sim, estava calor. A isso teria conseguido responder. Mas a pergunta que ela fizera fora outra.

E a resposta para essa também a poderia ter dito; soube-a no instante em que a ouvira (luz e som em simultâneo, sinal que a tempestade estava muito próxima): não.