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“A maioria das crianças de Kibera nunca lavou os dentes ou teve um brinquedo”

25 abr 2016 00:00

Erica Rodriguesvoluntária no projecto From Kibera with Love

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Jacinto Silva Duro

O que a fez ir para Kibera, a maior favela do mundo, no Quénia, para ajudar no projectoFrom Kibera with Love?
A pergunta que percebi que tanto, eu como outros voluntários, fazíamos a nós próprios, perante determinadas situações em que nos parecia que a nossa ajuda não era bem-vinda era: quem nos disse para virmos? Por um lado, gostava de fazer voluntariado no terreno e ter uma experiência pessoal que fosse totalmente diferente daquilo que conhecia. Por outro, quando conheci aFrom Kibera with Love (FKWL)e a Marta Baeta, a fundadora do projecto, senti que podia aprender muito e contribuir também com alguma da minha experiência profissional.
O que é preciso para ir?
Na teoria, para entrar no Quénia é preciso passaporte, visto e vacinas. Na prática convém estar também associado a um projecto já existente no terreno, uma vez que a adaptação nem sempre é fácil e para quem não conhece é muito fácil ser-se enganado. Além disso, é preciso querer muito e é fundamental deixar cá todas as ideias pré-concebidas – os preconceitos - e ir preparado para encontrar e viver tudo o que acontecer como uma experiência. Seja ela boa ou má.
Há semelhanças na vida das crianças da favela de Kibera, à das crianças portuguesas?
A única semelhança entre eles é o facto de serem crianças. Em Kibera, nascem em famílias muito grandes e pouco funcionais, muitas delas não sabem de um ou ambos os pais e as que os conhecem não recebem preocupação, carinho e cuidado da parte deles a que as crianças portuguesas estão habituadas. Crescem entregues a si, dormem no chão ou em colchões velhos, em “casas” que são barracas, e comem duas ou três refeições que fazem diariamente. Nos dias bons, na escola, comem papa feita com farinha e açúcar e chapati, uma espécie de panqueca frita. Dividem os livros escolares, a borracha e o apara-lápis com os colegas. A maioria nunca saiu de Kibera, usa as roupas que recebe e quando são apoiados por projectos que garantem a sua educação sabem, desde muito pequenos, que há alguém que lhes paga os estudos porque os pais não podem ou não querem. Isso faz com que sejam muito gratos. A maioria das crianças de Kibera nunca lavou os dentes ou teve um brinquedo.
Houve histórias que a tocaram de modo especial?
Foram tantas... É muito difícil conviver com crianças que vivem realidades que nem sequer imaginamos ser possíveis e não nos sentirmos tocados. Vi e conheci um bocadinho de tudo. Vivi um pouco como eles vivem, sendo que tinha muito melhores condições. Isso fez-me conhecer e experimentar a sua realidade. E é muito diferente saber que há crianças que não jantam, e se deitam cedo para não sentirem a fome, e ter uma noite em que também nós não jantámos e damos por nós a fazer o mesmo. Às vezes, pensava “que não nos aconteça nada, nem nos dê a fome”, mas sabia que, para mim, era temporário e no dia seguinte, se me apetecesse e não acontecesse qualquer imprevisto acontecia quase todos os dias - podíamos acordar e apanhar um transporte até ao shoppingmais próximo, beber um café ou comprar o que precisássemos. Já as crianças, teriam de acordar, ir para as aulas e esperar pela hora da primeira refeição. Apesar das muitas histórias que me impressionaram, o que me tocou foi adesumanização que muitos deles vivem e que aceitam pacificamente porque é a única realidade que conhecem.
De que forma podemos ajudar o projecto?
A FKWLajuda quase 80 crianças criando condições para que estudem, o que implica o pagamento das propinas escolares, fardas e materiais, alimentação e cuidados de saúde. Em paralelo e sempre que possível, tentam também melhorar as condições de vida das respectivas famílias, o que melhora substancialmente o aproveitamento escolar, a motivação e o empenho. Ao seguirem a página da FKWL, no Facebook, podem acompanhar o que vai acontecendo, responder aos apelos pontuais de donativos para esta causa extraordinária ou participar nos eventos e acções de solidariedade em Portugal. 

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