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Cartas para Leiria e para o Futuro, Ana João Santos: “Querer perpetuar esta dança contigo”

11 jul 2020 08:50

“Tens essa sabedoria de gente antiga (...) Mas tens também esse ar travesso e matreiro (como que num perfil do tinder) armado em miúda fit-cool-moderna”

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Ana João Santos, técnica de serviço social
Ricardo Graça

Hoje, Ana João Santos escreve a Pedro Nazário.

Este é um projecto de troca epistolar, organizado em corrente: 12 pessoas da cidade procedem ao envio de uma carta dirigida a uma outra pessoa que vive num bairro diferente, explorando a cidade como referência, tendo em conta expectativas de um amanhã. O que querem melhorar, o que acham importante conversar, o que é urgente repensar. Abrem uma conversa pública entre pessoas que se conhecem e não se conhecem, mas que partilham o espaço de uma cidade agora.

As Cartas Para Leiria e para o Futuro integram a programação de MAPAS, que decorre em Leiria de 1 a 12 de Julho de 2020, com o JORNAL DE LEIRIA como media partner.

Para acompanhar diariamente, online, no site do JORNAL DE LEIRIA e no site de MAPAS (https://www.m-a-p-a-s.com/).

"Leiria, 8 de julho de 2020

Minha doce Leiria,

Queria contar-te que recebi há pouco uma carta do Lima Bastos. Homem bonito! Filósofo, médico, pai, avô e marido de gente de quem gosto muito e que me faz sempre lembrar cravos vermelhos. É meu vizinho, sabes? Vive mesmo aqui ao lado mas vejo-o muito poucas vezes. Não frequentamos as mesmas ruas, os mesmos cafés nem o mesmo supermercado. É o suficiente para acontecer vê-lo apenas uma a duas vezes por ano (dizem que és pequena, mas fico sempre na dúvida…). Dessas poucas vezes, sempre que passa por mim, larga um sorriso que me faz sentir em casa (como tu). E a carta dele? Uma declaração de amor a ti. E a mim apetece-me fazer o mesmo: escrever-te uma carta de amor, daquelas quase ridículas.

Porque. Sabes. Há muito me casei contigo…

Perdi a conta às vezes em que te ouvi ressonar e quis imediatamente fugir para outra cama (como fiz em tempos, lembras-te? Nessa altura quase nos divorciámos…). Recordo-me de ficar constantemente assombrada com o teu mastigar de boca aberta e barulhento, enrolada num casaco de vison imerso em naftalina, em que mostravas os teus ares de nova-rica e riso oco. Não suportava aqueles dias em que assistia impávida ao teu olhar de lado a micar o que o vizinho levava vestido ou calçado. E nauseava-me tanto aquele hálito que exalavas a rio carregado de descargas ilegais enquanto proferias “Sr. Dr. isto, Sr. Dr. aquilo” numa qualquer reunião de circunstância!! Ou as tuas frias noites de inverno sem movimento, a querer imitar uma aldeia remota do interior do país (deixa lá as aldeias serem aldeias com a sua paz e pássaros e flores).

Mas com o tempo, fomos aprendendo a subir a montanha juntas e eu passei a amar cada pedacinho teu. Não quer dizer que adore esse teu feitio de drama queen autocentrada banhado a lágrimas de crocodilo! Aprendi foi a dar muito mais valor às coisas que amo em ti, às tuas ruas e histórias que sei de cor e percorrer de olhos fechados! Para mim tu és o sol na esplanada do quiosque da Paula, as bolas dos garotos a interceptarem-se na Praça Rodrigues Lobo, o sorriso da D. Felismina dos chapéus, as iscas de sábado da D. Estrela, os meus amigos com os filhos ao colo a rir num banco de jardim, os melhores biscoitos do mundo da LuziClara e as cautelas cantadas na voz do Sebastião. És a sexta-feira ao fim da tarde com o meu pai na melhor livraria do mundo – a Arquivo. És os gatos da rua da minha mãe, onde mora gente de todos os lugares. És a cozinha dos porcos no dia 23 de dezembro. És senhora do monte e rainha Isabel. És roteiro da judiaria contado pelo António ou pela Sara. És o meu avô João da Horta e a minha avó Mila a venderem bolos-rei sem fim na Pastelaria Santos aquando do Natal. Ou o meu tio Zé e a tia Júlia a ganharem concursos de tango no antigo Grémio Literário depois de ela ter vendido o peixe todo do dia no Mercado Santana. És as meninas dos anos 20 à espera que os militares deem água aos seus cavalos na fonte das três bicas, só para os verem e suspirarem. És o escorrega inventado da Sé. És sentir caruma na sola dos pés nos piqueniques de verão.

Tens essa sabedoria de gente antiga, com o teu castelo, os teus mercados, esplanadas, teatros, escolas de dança e de música, universidades sénior e a tua bela Vila Portela. Mas tens também esse ar travesso e matreiro (como que num perfil do tinder) armado em miúda fit-cool-moderna, com os teus passeios Polis, os teus Museus e jornais galardoados, os teus estudantes estridentes, os teus projetos atrevidos, e as tuas gentes. Criativas, irreverentes, cheias de vida e de vontade de sonhar.

Eu sonho. Sonho com o meu/teu/nosso futuro. Nesse sonho estão sempre presentes as casas que fui vivendo e construindo contigo: o bonito Cinema Paraíso, o acolhedor Ao Largo, a incrível Sociedade Artística Musical dos Pousos, a destemida InPulsar, a carismática ecO, o fortíssimo Festival A Porta, a muito especial APPC-Leiria. São esses lugares e não-lugares que me fazem querer perpetuar esta dança contigo, num inebriante ata e desata.

E nesse sonho está também o Pedro, a quem dirijo parte desta carta. O Pedro tem 9 anos. Vive em Leiria. É um bocadinho parecido comigo: diz que gosta da vida que tem. E do monte dos Capuchos também. Que não gosta de gritos nem de injustiças.

Nem eu Pedro, nem eu!

Querido Pedro,

Sei que não me conheces e que provavelmente a tua Leiria é uma Leiria bem diferente da minha. Só espero que um dia te enamores por ela tanto como eu! Que lhe consigas tirar os azimutes, apanhar-lhe as manhas e dar-lhes a volta em vez de lhes fugir! Que te dê um prazer imenso vê-la crescer e abrir-se ao mundo ao mesmo tempo que conserva em si aquela modéstia de pôr-do-sol do Pedrógão. Que consigas parar (pode ser ali na rotunda do sinaleiro), fechar os olhos e lhe ouvir os riachos, os segredos, as portas que se abrem e fecham em jeito de melodia, as pessoas que passam e aquelas que ficam. Que consigas perceber que a miúda não é fácil. Que exige ser pensada. Que às vezes precisa de uns abanões para não se armar em parva, esquisitinha, conservadora e de vistas curtas. Ou que às vezes precisa apenas que a leves a jantar fora e lhe ofereças os vinhos e iguarias das suas entranhas para a fazer voltar a acreditar que tem todo o potencial e liberdade do mundo para ser o que quiser!

Espero mesmo que, depois dos estudos, vás dar uma volta ao mundo. E que depois disso regresses. E faças desta a tua casa também. E que a alimentes com os teus sonhos. E que a ti, ela te alimente a alma!

Beijinhos e até sempre,

Ana João"

Cartas anteriores:
1. Patrícia Martins
2. Jorge Vaz Dias
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4. Maria Miguel Ferreira
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6. Xana Vieira
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8. Sara Marques da Cruz
9. Isabel Jácome
10. Ângelo Lima Bastos