Sociedade

Manuel Carvalho da Silva: “António Costa é o que em ciência política se chama um líder solitário”

11 fev 2016 00:00

Sociólogo e ex-líder da CGTP diz acreditar que o Governo dure quatro anos e considera que o “grande combate” do País e dos portugueses “é impedir que a emergência e as medidas excepcionais se tornem normalidade”

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Maria Anabela Silva

O Orçamento de Estado para 2016, aprovado em Conselho de Ministros, arrepia caminho à austeridade?
O que nos diziam os responsáveis do anterior Governo, de que austeridade acabou e que entrámos numa fase de crescimento económico garantido, não é verdade. Continuamos e vamos continuar debaixo de políticas duras, que impõem rigor e que limitam muito a vida das pessoas e da estrutura económica, nomeadamente, das pequenas e médias empresas. O que temos é a possibilidade de diminuir um pouco a carga de sacrifícios a camadas da população com menos rendimentos. É nisso que está sustentado o compromisso de governação do Governo. Isso pode implicar que outras faixas da população, que até agora não foram tão sacrificadas, o sejam um pouco mais. Há impostos e outras medidas para compensar a pequenina folga a dar aos mais sacrificados. Os rendimentos do trabalho não devem ser mais penalizados do que os do capital, nomeadamente, dos capitais financeiros. Estamos perante um desafio delicado de conjugar três objectivos fundamentais: equilíbrio orçamental, justiça social e dinamização da economia, e não apenas o mero crescimento Articular esses objectivos, no contexto europeu que vivemos e face à situação do País, é um exercício muito, muito difícil.

Acredita que o Governo terá capacidade para fazer esse exercício?
Até agora, o Governo deu sinais de determinação e de grande empenho negocial, de forma a equilibrar compromissos internos com compromissos europeus. Esse percurso ainda demorará uns tempos e não se esgotará agora, com o pontapé de saída para a aprovação do Orçamento. O Governo só terá êxito se for muito determinado na política de pequenos passos corajosos, que tragam justiça social e que dêem dignidade às pessoas. Esse é o único caminho que pode gerar esperança e confiança e, daí, resultar uma dinâmica nova, não apenas para as pessoas, mas também para o tecido produtivo. Vínhamos habituados a todo um argumentário, de ordem política e de fundamentação económica, de que as políticas de austeridade são inevitáveis.

O discurso de que não havia alternativa.
Exacto. O povo português, por acção do anterior Governo e do ainda Presidente da República, foi convidado a subjugar-se, em nome da tese de que não havia alternativa. Entretanto, em sectores que apoiavam o Governo desenvolveu-se algum sentido crítico, de que as coisas não podiam continuar assim e que era preciso fazer uma governação do possível, sem nunca pôr em causa as posições políticas dominantes no plano internacional, dos mercados e da União Europeia (UE). O Governo de Passos Coelho ficou sempre no campo da subjugação pura e simples. Para o actual Governo ter viabilidade, não pode seguir a governação do possível limitada pelos medos. Tem de fazer a tal governação dos pequenos passos corajosos. Podem ser pequenos aumentos nas pensões ou em medidas de protecção social, mexidas na área do trabalho, como os dias de férias ou os feriados, ou no Salário Mínimo Nacional. Pequenos passos feitos um a um, com a consciência de que não é possível dar grandes passos, de forma a que, dando o primeiro se ganhe confiança para dar o segundo e depois o terceiro e ir afirmando o primado da democracia, da soberania do País e da política. Espero que este Governo siga este caminho e que vá consolidando posições e alargando a sua influência, porque não lhe basta o apoio parlamentar à esquerda. Precisa de mobilizar a sociedade para conseguir que as coisas se alterem. O problema é que há um conjunto de actores políticos nacionais que ajudam muito pouco.

A quem se está a referir?
Nos grandes meios de comunicação social, onde está instalada o comentário e a análise predominantemente neoliberal, vejo uma sistemática relevância de tudo o que são dificuldades. Os sinais que vêem da Comissão Europeia e dos tecnocratas europeus são ampliados, para meter medo e colocar Portugal numa situação mais débil. Vemos eurodeputados, como Paulo Rangel e outros, no Parlamento Europeu, quase que a apelar a forças que não estão de acordo com esta opção de Governo apoiada à esquerda para agirem contra Portugal. Isto é traição ao povo e ao País. Esta semana ouvi uma conhecida jornalista, que faz análise económica, a dizer que o problema são os ciclos políticos e que, se deixássemos a economia funcionar com a sua regulação e as suas regras, tudo estaria certo. Pura loucura. Se há coisa que está evidente é que não existe regulação da economia, nem aqui nem no plano europeu. Se deixássemos a economia e a sua regulação a resolver tudo, acabávamos com a democracia. Um dia destes, Braga de Macedo [ex-ministro das Finanças] veio dizer que os comportamentos UE, de maior exigência agora para com Portugal, são naturais, porque antes éramos o bom aluno e agora são “os suspeitos anti-europeus” que estão a sustentar o Governo. Isto merece uma reflexão profunda sobre que é hoje ser anti-europeu.

E o que é hoje ser anti-europeu?
O ser anti-europeu hoje é desrespeitar os valores de solidariedade e de democracia da Europa. É, por exemplo, o que se passa na Hungria e noutros países com expressões e acções de aniquilamento da democracia. Ser anti-europeu é também o primeiro-ministro britânico defender o melhor de dois mundos: o ficar na UE, não para defender os valores da solidariedade e do compromisso entre todos, mas para benefício económico. A UE é, em primeiro lugar, um compromisso de valores, de solidariedade, de cooperação e de espaço único, não exclusivamente para a economia, mas para tudo. É um espaço único para os cidadãos e para os direitos. A Europa deve polemizar o seu projecto, tendo em conta que a busca de outros caminhos não é, de forma alguma, ser anti-europeu.

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