Sociedade

Mobilidade para todos não é uma utopia,  mas exige planeamento e "músculo político"

23 set 2020 15:15

Debate Leiria 2030 sobre os desafios da nova cidade discutiu problemas de mobilidade e soluções para os minimizar. Paula Teles, Francisco Marques e João Pedro Silva foram os oradores.

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Mobilidade esteve no centro do debate que juntou João Pedro Silva, Paula Teles e Francisco Marques
Ricardo Graça
Maria Anabela Silva
Mobilidade para todos, um desígnio que contribuirá para a descarbonização, não é uma utopia, mas exige um grande planeamento e “músculo político a todas as escalas”, para que não se continue a enfrentar o problema com medidas avulso, muitas vezes adoptadas porque existem fundos comunitários disponíveis e não integradas numa estratégia mais abrangente.

Esta foi uma das conclusões do terceiro Debate Leiria 2030, realizado esta terça-feira, subordinado ao tema Os desafios da nova cidade: mobilidade, centralidade e integração.

Promovido pela Estratégia Leiria 2030, o encontro foi organizado pelo JORNAL DE LEIRIA e teve como oradores Paula Teles, especialista em mobilidade, Francisco Marques, arquitecto e presidente da Adlei (Associação para o Desenvolvimento de Leiria) e João Pedro Silva, docente do Politécnico de Leiria.

Depois de mais de 20 anos a chamar a atenção para a importância de as cidades serem “inclusivas”, Paula Teles lamenta que este desígnio esteja por cumprir, com as acessibilidades a contribuírem para agravar as assimetrias, como ficou “evidente” com a pandemia. “O aumento de casos que a determinada altura aconteceu em Lisboa teve muito que ver com as pessoas que viviam na periferia, que continuaram sempre a trabalhar e a usar o transporte público, que não tem a oferta, a segurança e o conforto necessários”, especificou.

As assimetrias nas cidades são cada vez maiores e as acessibilidades contribuem decisivamente para essas assimetrias. Veja-se o que se passou com a Covid-19
Paula Teles, especialista em mobilidade

Pegando no contexto actual, Paula Teles defendeu que o planeamento e a estratégia das cidades “não pode, a partir de 2020, continuar a ser o mesmo”, com recurso “a medidas avulsas, que andam à frente das cenouras, que são os quadros de financiamento”. “Porque a Europa paga ciclovias, fazem-se ciclovias. Isso é importante, mas muitas vezes não se integram no todo da cidade”, advertiu, considerando que “o planeamento é absolutamente essencial, para que as metas de emissões zero e da mobilidade para todos não sejam uma utopia”. 

O presidente da Adlei não podia estar mais de acordo. Contudo, advertiu: “A mobilidade para todos é alcançável, mas o caminho ainda é longo, atendendo ao modelo económico que temos”, que continua a “estimular a produção de milhões de automóveis”, e à forma como “nos organizamos na cidade”, em que, muitas vezes, moramos num sítio, trabalhamos noutro e temos os filhos a estudar num outro, “com deslocações diárias que não são compatíveis com uso da bicicleta”. Para baralhar ainda mais a equação, em cidades como Leiria “falta massa crítica para alimentar os transportes públicos, com o conforto e a frequência que desejamos”.
 
Não podemos ter ilusões. A grande maioria das pessoas tem de fazer deslocações diárias que não são compatíveis com o uso da bicicleta
Francisco Marques, arquitecto e presidente da Adlei
Planear é, no entender de João Pedro Silva, a pedra de toque do processo, mas, frisou, “fazer planos de mobilidade é um trabalho de artesanato e não de fabrico em série”, que tem de ser “dinâmico e participativo, explicado às pessoas e discutido com elas”. “Temos de, gradualmente, ir acabando com as distopias existentes, resultantes de cada um quer optimizar a sua viagem” e ir “molificando as estruturas na cidade”, acrescentou o docente, que desafiou as autarquias da região a “inspiram-se” no U-bike, o projecto de partilha de bicicletas do Politécnico, para criarem os seus próprios sistemas, que possam também incentivar os alunos de outros níveis de ensino a utilizar este meio de transporte nas suas deslocações na cidade, de forma a que “o hábito fique”. 

Mas, para funcionarem, os sistemas de bike-sharing têm de ser “gratuitos e de fácil utilização” e acompanhados da criação de infra-estruturas de aparcamento e de carregamento (para as eléctrica) “espalhadas pela cidade”, advertiu Paula Teles. Utilizador regular  da bicicleta, Francisco Marques defendeu também que, enquanto não chegam as soluções óptimas, com espaços específicos para pões, bicicletas e trotinetas, que existam zonas partilhadas , “adaptando a marcha às circunstâncias”. 
 
O projecto U-Bike tem de ter continuidade por parte dos municípios. Se a cidade não lhe confere ajuda, em termos de infra-estruturas e medidas de acalmia de tráfego, o hábito perde-se
João Pedro Silva

Paula Teles sublinhou ainda que o investimento em ciclovias não pode fazer esquecer a necessidade de criar condições para o andar a pé. Reconhecendo que “não há dinheiro para tudo, deve fazer-se o possível”. “Por que não pegar em duas ou três faixas de rodagem e fazer duma delas um corredor bus, uma ciclovia ou um passeio. Para isso acontecer, tem de haver decisão política forte e determinada”, exemplificou, considerando que tem faltado “músculo político” para concretizar aquilo que, há muito, os especialistas vêm defendendo. Uma incapacidade que, disse, se sente “a todas as escalas”, a começar na instâncias europeias, passando pelos Governos e terminando nos municípios. 

“A nível europeu foi determinado que o dinheiro só iria para municípios que tivessem plano de mobilidade. À ultima da hora fizeram planos a correr, com uma lista de Excel para ter enquadramento e ir buscar dinheiro ao quadro comunitário. Os fundos não estão a ter a execução que deviam porque os municípios não sabem muito bem onde vão aplicar esse dinheiro. Isto acontece porque não planearam”, concretizou Paula Teles, considerando que, “nas últimas décadas, houve uma negligência total daquilo que é o ordenamento da cidade”. 

Essa incapacidade de “casar o urbanismo com o planeamento da cidade” é, no entender daquela especialista, uma das razões que explica a existência de “tantos movimentos pendulares”, com pessoas a viver num lado e a trabalhar do outro”. Por outro lado, criaram-se “barreiras” entre as periferias e a zona central das cidades, acrescentou Francisco Marques, dando como exemplo a relação entre Leiria e os Parceiros, que tem “grandes deficiências”.

No final do debate, Carlos André, coordenador do grupo Leiria 2030, responsável pela elaboração da estratégia do concelho para a próxima década, referiu ainda o “problema de mobilidades” existente nas freguesias. “Leiria tem de ser uma cidade habitável onde nós todos gostemos de habitar. Este é o desafio estratégico de Leiria”, rematou.