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Mosteiro da Batalha. Há um rei identificado num grafito que até agora tinha passado despercebido
Investigador identifica retrato de D. Manuel I em grafito no Mosteiro da Batalha
O investigador Alfredo Pinheiro Marques identificou o rei D. Manuel I (1469-1521) num grafito nas Capelas Imperfeitas, no Mosteiro da Batalha, apontando as feições, o cabelo, a boina e respectiva joia, visíveis noutra iconografia do monarca.
“Fui encontrar essa imagem num dos livros que existem publicados sobre grafitos do Mosteiro da Batalha, do autor Orlindo Jorge, (…) e no meio deles havia este absolutamente invulgar”, afirmou à agência Lusa Alfredo Pinheiro Marques.
Segundo o historiador, “quer em termos fisionómicos, quer de uma série de adereços que tem, percebe-se que é a mesma figura daquilo que até agora era conhecido do rei D. Manuel I”.
Alfredo Pinheiro Marques tinha identificado, em Maio de 2021, a figura do rei D. Manuel I num painel no Museu Nacional Grão Vasco, em Viseu. A identificação do grafito ocorreu em Março.
“Uma simples semelhança fisionómica não é suficiente para que possamos fazer identificações destas”, ressalvou o especialista em História da Cartografia e dos Descobrimentos, salientando, no caso deste grafito, que é “mais do que isso”, como o “corte de cabelo em redondo sobre a testa, que é muito característico”, e a boina.
Referindo que “as imagens até agora seguras que havia do rei D. Manuel são duas iluminuras no Arquivo Nacional da Torre do Tombo” e têm “sempre essa boina” com “uma joia que é inconfundível”, o também director do Centro de Estudos do Mar, sediado na Figueira da Foz (Coimbra), precisou que “permite fazer uma identificação, sem dúvida, porque a joia é sempre a mesma”.
“Além disso, a boina tem uma espécie de orla lateral”, observou o investigador, realçando que “a situação é de facto extraordinariamente sensacional, porque não é habitual que do rei mais célebre e mais rico da História de Portugal só houvesse estas pequenas imagens dele, das iluminuras ou as da escultura”, estas no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
Alfredo Pinheiro Marques destacou ainda as feições, exemplificando com o nariz - “batatudo na ponta” - e os lábios, e o queixo duplo que “já que se vê que é de idade mais avançada”.
“Mas, de facto, o feitio da boca e dos lábios, quer do lábio superior, quer de inferior, é o mesmo, portanto são feições muito características individuais”, sublinhou.
Assumindo que esta matéria “vai, certamente, ser de grande discussão e de grande sensação na História da Arte Portuguesa, porque é uma imagem coeva”, o historiador realçou que se percebe que “é um retrato pessoal do que se chamava, na altura, tirada do natural, significa, portanto, ‘à vista, de alguém que viu’”.
Por outro lado, o investigador observou ser “invulgar que um grafito tenha uma qualidade tão grande”.
“A hipótese que pode ser posta é de que quem o tenha feito não seja um pedreiro normal das obras e, sim, algum mestre ou de cantaria ou de vidraçaria”, declarou, notando que o grafito “está a cerca de dois metros e meio de altura”, pelo que “não é muito acessível” e “passou despercebido”.
De acordo com Alfredo Pinheiro Marques, “tratar-se-á, de facto, de um esboço a carvão que impregnou de tal maneira na pedra que sobreviveu”.
O Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha (Leiria), resultou do cumprimento de uma promessa feita pelo rei D. João I, em agradecimento pela vitória na Batalha de Aljubarrota, travada em 14 de Agosto de 1385, que lhe assegurou o trono e garantiu a independência de Portugal.
O monumento é Património Mundial da Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Director do Mosteiro da Batalha: quantidade, variedade e qualidade dos grafitos continuam a surpreender
A quantidade, variedade e qualidade dos grafitos no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, continuam a surpreender, mais de 600 anos após o início da sua construção, disse o director do monumento, Joaquim Ruivo.
“O seu elevado número [milhares], a variedade dos temas, a qualidade plástica de algum deles, a ingenuidade de tantos outros” são aspetos que Joaquim Ruivo destacou à agência Lusa.
Segundo o diretor do monumento, há grafitos “praticamente em todo o Mosteiro, com excepção da Igreja, da Capela do Fundador e do corpo exterior do lado norte e da fachada principal”.
“Estão com grande abundância nos dois claustros, na Sala do Capítulo, no dormitório, no interior das Capelas Imperfeitas e em todo o exterior das paredes sul e leste”, precisou Joaquim Ruivo.
Entre os grafitos, realçou “barcos em grande número” e de variada tipologia, sendo também “muito abundantes” motivos “arquitectónicos e vegetalistas”.
O responsável do monumento explicou que desenhados estão, igualmente, “moinhos com pás retangulares de madeira, tal como existem na Europa do Norte e que chegaram tarde à Península Ibérica”, e dois castelos, “um enigmático, um outro parecido com o de Porto de Mós”.
Ainda representados em grafitos estão trajes femininos, diabretes, caricaturas, retratos, falcoeiros ou cavaleiros, assim como letras maiúsculas góticas e gótico cursivo, além de jogos.
Entre os grafitos de animais o “mais famoso é o da cegonha”, mas há peixes e veados, e outros grafitos são relativos à heráldica.
Joaquim Ruivo salientou o grafito descoberto, há poucos meses, com a limpeza do Claustro Afonso V: “Uma grua/guindaste igual à utilizada por essa Europa fora na construção dos edifícios góticos e já utilizada pelos romanos”.
De acordo com o director, a maioria dos grafitos foi feita “com ponteiros de carvão e argila corada, o que faria prever o seu apagamento a curto prazo”.
“Mas, curiosamente, ao longo dos anos a acção da água e humidade provocaram a hidrólise da calcite e a sua passagem de solução aquosa para alcalina. Formou-se, assim, uma película de cristais de calcite que cobriu os pigmentos, os fixou e, literalmente, os transformou em pedra, preservando-os definitivamente”, esclareceu.
De acordo com Joaquim Ruivo, “nas paredes exteriores (sul-nascente e sul-poente) encontra-se outro tipo de grafito, que resultou de incisões feitas com objetos metálicos e que acabaram realçados pela coloração diferencial da pátina, avivando essas incisões num tom laranja”.
“Finalmente, a varanda norte do piso superior Claustro Afonso V está repleta também de grafitos incisos, mas esses, com toda a probabilidade, feitos pelos artífices que ficaram alojados nas dependências anexas, após a grande campanha de restauro iniciada em 1840”, declarou.
Para Joaquim Ruivo, “a existência de tantos grafitos representando barcos de todas as tipologias” remete “para a importância no estaleiro batalhino dos carpinteiros e, seguramente, carpinteiros que viriam da construção naval”, notando que “as estruturas de madeira necessárias à construção das abóbadas, os cimbres por exemplo, eram estruturas muito semelhantes às da construção naval”.
“Os motivos arquitectónicos e vegetalistas remetem-nos para os canteiros, para os mestres, que na pedra expressaram os seus planos. Os grafitos de jogos, por exemplo, permitem-nos especular como os trabalhadores passavam algum do seu tempo, o tempo de ócio”, adiantou.
Segundo o director, os grafitos “falam de uma mundividência de centenas de homens anónimos que deram o seu saber e experiência, sobretudo nos séculos XIV e XV, e ainda início do XVI, para a construção de um edifício ímpar”, onde se incluíam pedreiros, alvanéis, lavrantes ou vidraceiros.
“Ao mesmo tempo falam do seu quotidiano, dos seus interesses, e é isso tudo que torna o estudo dos grafitos muito aliciante e fundamental”, considerou.
Entre os estudiosos dos grafitos, destacou o historiador Saul António Gomes, a quem “não escapou, desde logo, a importância dos grafitos no contexto dos estudos batalhinos”. “E Jorge Estrela [Angra do Heroísmo, 1944 - Leiria, 2015] fez um primeiro levantamento, análise e sistematização de uma parte dos grafitos, num estudo pioneiro e fundamental, que necessariamente é o ponto de partida para qualquer estudo e interpretação posteriores”, referiu.
Já “Orlindo Jorge tem continuado esse trabalho, com grande empenho, rigor e saber”, acrescentou.
Citando Jorge Estrela, Joaquim Ruivo assinalou que o estudo dos grafitos “ressurge como indispensável à compreensão de um tempo”, sendo “um discurso improvisado sobre a pedra”.
O diretocr do mosteiro defendeu como necessários “o estudo epigráfico e leitura das dezenas ou centenas de assinaturas e frases que povoam as paredes dos dois claustros e das Capelas Imperfeitas”.