Sociedade
Nuno Sousa Vieira: “Leiria é uma espécie de reflexo de Portugal”
O artista plástico afirma que mais do que uma 'Capital Europeia da Cultura', apenas em 2027, gostaria de ver Leiria como uma cidade que aposta, seriamente, na cultura antes e depois dessa data
O espaço de trabalho, que tem sido uma presença constante na sua obra, é uma fonte inesgotável de assunto para tratamento criativo?
É absolutamente determinante para todos nós: a luz que temos ou o espaço que temos para nos movimentarmos marca-nos. Tomei noção disso com o atelier onde trabalho, na antiga fábrica de plásticos Simala, nos Pousos, à entrada de Leiria. As condições do local passaram a a fazer parte integrante do meu trabalho. É um tema inesgotável porque, por muitas mudanças sociais e culturais que possam ter acontecido, não somos diferentes. Somos exactamente iguais há séculos e as nossas preocupações são as mesmas. Não somos diferentes dos romanos ou gregos antigos e nem as nossas estruturas sociais divergem muito. Não quer dizer que estou “agarrado” à questão do espaço de trabalho. O que mais gosto no trabalho criativo é a possibilidade de não ficar preso a assuntos e questões e poder ser um pouco diletante, numa parte que sinto que é boa: aquilo que aprendi com determinado assunto vai contaminar o meu trabalho seguinte. Entendo a arte como uma plataforma de experimentação e de produção de algo que ainda não vi e que ainda não existe. Nos últimos anos, e principalmente desde uma exposição de 2010, em Inglaterra, a primeira que fiz fora do País, cujo título era Não subestimar a importância do local de trabalho [Don't underestimate the impact of the workplace] comecei a perceber que tudo aquilo que estava exposto tinha um lugar e tinha tudo a mesma origem e essa origem era a Simala. O título dessa exposição resulta da tomada de consciência da importância desse espaço no meu trabalho.
A Simala é espaço de trabalho e fonte de inspiração?
Não gosto da palavra “inspiração”. Dá a ideia de que o artista fica quieto à espera que alguma coisa de origem divina desça sobre si e ele fique possuído e depois cria alguma coisa. Seria óptimo se fosse assim. E se não há trabalho? Se não há, é porque não houve inspiração. Ou seja, o artista não tem culpa e é um ser inimputável, que fica quieto à espera que a inspiração chegue. Em 2008, por várias razões, deixei de ter água e luz na Simala. Não as ter num ateliê, é algo que me forçou a encontrar mecanismos e formas de trabalhar dentro das condições que tinha. Não tinha água nem luz, mas tinha outra outras condições que outras pessoas não têm e eu tenho de trabalhar com isso.
A Simala é uma fábrica desmantelada. Está lá sozinho.
O meu pai trabalhou na Simala quando veio para Leiria. É um espaço que existe desde a década de 1960. No início deste século, o grupo dono da Simala inaugurou uma nova estrutura em Porto de Mós e o espaço nos Pousos ficou vazio. Eu tinha um ateliê na famosa casa da Reixida, onde os Silence 4 chegaram a ensaiar, e por onde passaram outros artistas, mas saímos todos de lá e fiquei sem um espaço. Falei com os donos da Simala e fui, provisoriamente, para lá em 2001. Antes disso, também trabalhei na fábrica nas férias e sempre tive uma relação com ela. Ou seja, quando fui para lá, já conhecia o espaço, mas nunca o tinha visto daquela forma. Quando cheguei, o processo de desmantelamento estava concluído, mas ainda havia maquinaria e tudo estava operacional. As janelas não estavam partidas, as luzes funcionavam… ao fim de 15 anos, as coisas já não estão assim. O edifício tem uma escala para a máquina e não humana. Para mudar uma lâmpada, é preciso subir a oito metros de altura. Logo, quando uma se funde, fica fundida. É fora de escala para um único humano. Tem de ser um conjunto de humanos a tratar dela. E esta é uma das coisas que me interessam para o meu trabalho. Hoje, a Simala continua a ser o meu ateliê, mas já não é um sítio onde produzo. A Simala não é o sítio onde produzo as obras, é o sítio onde as penso. Ao longo do tempo, houve uma série de pinturas sobre vistas a partir do ateliê… As próprias Meninas, de Velázquez, têm uma relação com o espaço de trabalho. É um assunto repetido na história da pintura e está na génese do meu trabalho. A Simala é como nós, vai envelhecendo e o que me interessa são também os paralelismos com as estruturas sociais e connosco próprios.
E também com opostos. A oposição entre o consumo, a utilidade e o obsoleto.
A Simala passou a estar obsoleta porque, a determinado momento, foi descuidada. Tudo o que não cuidamos envelhece mais rapidamente. E não são apenas as estruturas arquitectónicas, as pessoas também. Quem não é cuidado, envelhece mais rapidamente. O que me interessa muito naquele espaço, são uma espécie de reflexos das pessoas ou como o comportamento daquele edifício, a determinado momento, é tão semelhante à nossa própria existência.
Fez mestrado em pintura, mas boa parte da sua obra é na área da escultura. Porquê?
O meu doutoramento também é em pintura e toda a minha formação o é. Faço pinturas tridimensionais. Essa foi uma questão pessoal que tive de resolver, a determinado momento. O meu trabalho mudou. Fazia pintura e o meu trabalho foi crescendo, desenvolvendo- se... as pinturas que fiz até ao ano 2000, agora não são mostradas. Olhando para elas, percebo como fui de um ponto para o outro. Muitas delas tinham um cariz figurativo, eram mais orgânicas do que geométricas… e a minha obra escultórica é mais geométrica do que orgânica. A determinado momento, por incapacidade minha, deixei de conseguir trabalhar os assuntos do modo que queria com a pintura. Esta disciplina tem uma relação forte com a superfície e com a bidimensionalidade e isso projecta-nos para um território que está à nossa frente e não ao nosso lado. Não é obrigatório, mas, normalmente, ela carece de uma parede para a suportar. Isso projectanos para uma experiência da obra que é muito mais mental do que física, quando comparada com objectos. Quando os trabalho e me interessa abordar o desgaste, não quero uma representação desse desgaste. Posso pintar algo e a seguir coloco essa peça à chuva, ao sol, ou a servir de superfície de trabalho e vou-a danificando… Mas há sempre algo que é falso… o estrago é verdadeiro, mas a razão para ele existir não é a mesma que acontece na Simala. Na pintura, não consigo atingir esse objectivo. É um problema meu e não da disciplina. Não consegui resolver essa questão e o trabalho foi mudando. Mas continuo a defender que sou pintor. Quase todas as minhas esculturas nascem do plano e não do volume. Por exemplo, a ideia de dobra, é algo muito presente no meu trabalho. Se tivermos um plano e o dobrarmos, tridimensionalizamo- lo. Por fim, não há nada no mundo real que seja bidimensional, a pintura busca uma ideia de bidimensionalidade e esse descolamento não me interessa.
De Lisboa a Londres e São Paulo, com paragens em Paris e Düsseldorf, Nuno Sousa Vieira é um nome conhecido, contudo é um quase desconhecido em Leiria.
Esse anonimato é algo que acontece naturalmente em Leiria. Vivo em Leiria, mas ninguém sabe que lá vivo. A minha prática artística desenvolve- -se toda na cidade, as pessoas e empresas que trabalham comigo são de Leiria…
Numa cidade que quer ser candidata a Capital Europeia da Cultura e onde a música, a dança e o folclore têm grande projecção, há ausência de expressões mais contemporâneas de arte?
Vou fazer parte do grupo Missão 27, que vai discutir essa candidatura, no dia 8 de Abril. Não gostando, gosto muito de Leiria. Tenho… uma relação de amor-ódio com a cidade, igual à que tenho com o País. Leiria é uma espécie de reflexo de Portugal e deve ser das cidades mais portuguesas a nível nacional, porque partilha todas as características do País. Veja-se este exemplo muito simples; a actual directora do Museu do Chiado veio de um museu na Covilhã… Naquela cidade, essa senhora tinha como trabalho gerir um espaço com um orçamento que lhe era atribuído pela autarquia, com a liberdade que o seu cargo lhe atribuía. Alguém conhece directores de museus em Leiria que tenham liberdade para gerir uma verba anual que lhes seja atribuída? Eu não conheço...
Perfil
O Desporto e a Arte
O trabalho de Nuno Sousa Vieira faz parte de várias colecções importantes, como a PINTA - Latin America, Centro de Artes Visuais, Colecção Teixeira de Freitas, Colecção PLMJ, Colecção António Cachola, Câmara Municipal de Leiria, Colecção Paulo Pimenta ou a Colecção José Lima. É (re)conhecido em Paris, Londres ou São Paulo e é considerado um dos nomes marcantes da arte contemporânea nacional. Natural de Leiria, 44 anos, o artista é filho de uma família originária do Porto. O pai, Américo Vieira, jogador profissional de futebol, passou pelo Futebol Clube do Porto, pelo Guimarães e pelo Salgueiros, até chegar à cidade do Lis, no seguimento de um convite para o União de Leiria. Aceitou a posição na formação do Lis, mas apenas se tivesse outro emprego. Um dos sócios da UDL era dono da fábrica de plásticos Simala e Américo começou a existência dupla de jogador e funcionário de escritório. Um ano depois, nasceu Nuno Sousa Vieira. Docente no Instituto Politécnico de Tomar e na Escola Superior de Belas Artes, em Lisboa, diz que nunca se imaginou a fazer algo que não estivesse ligado à arte. “Nunca fui um aluno que me destacasse nas aulas de Educação Visual e cheguei a estar num curso de Desporto, porque jogava na União de Leiria, mas regressei a Artes.” A inscrição no curso superior de Pintura fê-la a irmã, engenheira química. “Para quem a conhece, sabe que ela fazê-lo seria a coisa mais improvável do mundo”, conta. Foi para a ESAD.CR e, até hoje, está grato à visão premonitória da irmã.
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