Missão Ucrânia

Olesia e Vlad deixaram o pai na guerra. “Sabemos que o está a fazer por nós”

19 mar 2022 13:00

Mais de 9 mil pessoas chegaram nas últimas semanas a Portugal vindas da Ucrânia. Entre elas, muitos adolescentes e crianças. Para as famílias, o primeiro Dia do Pai em Portugal será um dia de saudade

olesia-e-vlad-deixaram-o-pai-na-guerra-sabemos-que-o-esta-a-fazer-por-nos
Os irmãos Olesia e Vladislav Volianiyk, originários da região de Ternopil, vivem agora em Porto de Mós

Deixaram não um, mas dois pais, na Ucrânia. Pai biológico e pai afectivo. É com o segundo que têm relação mais próxima. Muito próxima, mesmo. Uma relação completa. Com ele repartem memórias de dias e dias a pescar, e mesmo agora, separados por milhares de quilómetros, escutam-lhe a voz, ao telefone, sempre que possível. Como na noite anterior à conversa com o JORNAL DE LEIRIA. Minutos demasiado breves, mas suficientes, e necessários, para garantir que continua tudo bem.

O padrasto – civil com treino militar, empregado numa fábrica até ao início da invasão da Ucrânia pela Rússia – está inserido na Força de Defesa Territorial, numa linha mais recuada, à espera, pronta para rechaçar a ofensiva do inimigo que avança desde 24 de Fevereiro. No derradeiro instante, despediu-se deles com humor, com optimismo de circunstância e palavras de esperança, provavelmente ensaiadas, as únicas palavras possíveis, a esconder a “tristeza profunda” por desconhecerem quando vão voltar a ver-se. O que os afasta do próximo abraço é a distância de uma espessa incerteza.

Os irmãos Vladislav e Olesia Volianiyk, ele com 17 anos, ela com 15, recém-chegados a Portugal, recordam a despedida no Parque Verde de Porto de Mós, a vila que agora os acolhe e onde já preparam os primeiros passos de uma nova etapa. Temporária, esperam. Na Ucrânia, o calendário não assinala o Dia do Pai a 19 de Março, ao contrário do que acontece em Portugal e noutros países. Mas ambos sabem o que querem dizer, de um extremo da Europa para o outro: “Que o amamos imenso, que estamos sempre ao lado dele mesmo que não seja fisicamente e que sabemos que o que ele está a fazer é por nós”.

Pai coragem

Esta é a mudança que Vlad adiou até se tornar inadiável. Apesar da idade, quis resistir. E combater. Quis seguir o exemplo e opor-se aos aviões russos que sobrevoaram a casa da família, na região de Ternopil, onde cadáveres de civis com a cara tapada apareceram numa floresta logo nos primeiros dias do conflito, quis levantar-se contra o alarme constante das sirenes de aviso para o perigo de ataques aéreos, quis reagir depois dos bombardeamentos que atingiram uma base militar nos arredores e perante as explosões no mercado da cidade, que causaram mortos. Após dois dias de “muito medo”, com horas e horas em abrigos subterrâneos, estava decidido a alistar-se na Força de Defesa Territorial, o braço armado em que o pai afectivo serve a causa ucraniana. Só a avó – que ficou para trás, na Ucrânia, como muitos idosos ficam, uns por doença ou cansaço, outros por convicção – conseguiu demovê-lo e convencê- lo que a viagem para Portugal, ao encontro de uma tia, imigrada em Porto de Mós, precisava dele para segurança da mãe, Alla, da irmã, Olesia, e do irmão mais novo, Ivan, um bebé de 13 meses. Quatro vidas entre os 9.200 pedidos de protecção temporária concedidos por Portugal a pessoas vindas da Ucrânia em consequência da guerra, até à última segunda-feira, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Para o padrastro de Vlad e Olesia, verdadeiramente, nunca houve escolha. Pegar em armas, independentemente da norma que impede todos os homens entre os 18 e os 60 anos de abandonarem o país, salvo excepções, é defender a terra onde nasceram e onde está escrita a história da família e do povo ucraniano. Elogiam-lhe a coragem, mesmo apreensivos. “O meu coração não está nada calmo”, diz Olesia, “a cabeça está lá”. A preocupação estende-se aos avós e aos amigos mais próximos, com quem falam através do telemóvel, e que vivem, a maioria, escondidos nas caves. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), a guerra na Ucrânia provocou pelo menos 691 mortos e 1.143 feridos entre a população civil, incluindo mais de uma centena de crianças, até ao final do dia de segunda-feira.

“Jamais uma galinha vencerá um tridente”

Em contacto com a familiar que reside em Porto de Mós, Vlad, Olesia, a mãe e elemento mais novo do grupo, Ivan, abandonaram Ternopil de autocarro, com destino à Polónia e a Varsóvia, a 500 quilómetros. Atravessaram a fronteira a pé e dormiram uma noite num centro de acolhimento para refugiados, antes de conseguirem lugar num outro autocarro, accionado pelo movimento IRA – Intervenção e Resgate Animal, que os trouxe para Portugal. O número de pessoas que fugiram da Ucrânia devido à invasão russa atingiu os três milhões, incluindo mais de 1,4 milhões de crianças, anunciou na segunda-feira um porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

Em Porto de Mós, o quotidiano começa a reconfigurar-se. Vlad e a mãe já têm emprego numa fábrica. Ele estudava radiocomunicações na Ucrânia e jogava voleibol, a irmã frequentava um curso profissional na área da contabilidade e praticava râguebi. Apesar de não completamente adaptados, estão em segurança. Têm apoio. Podem descansar.

O que está pela frente, o futuro, é tão denso como nevoeiro e igualmente impossível de decifrar. Mesmo que amanhã se pareça com aquilo que já foi, nunca será igual, diz Vladislav. Por dentro, ninguém vai esquecer. Olesia, entretanto, acredita que os sonhos de ambos não se perderam, que vão ser concretizados. E nestes dias longe do pai os irmãos sonham que tudo acabe e que a Ucrânia prevaleça. Estão de acordo: “a Ucrânia vai ganhar”, porque o povo ucraniano está unido e é um povo forte de alma e coração. E, também, porque “jamais uma galinha vencerá um tridente”.