Sociedade
Ontem estava nublado no Reino Unido, hoje... também
O que pensam os emigrantes da vitória do Brexit?
Mais uma vez, os resultados contrariam as últimas sondagens, incluindo a que foi divulgada pela Sky News após o fecho das urnas. Só a Escócia, a Irlanda do Norte e Londres votaram maioritariamente a favor da permanência do Reino Unido na União Europeia, mas os seus votos não foram suficientes para contrariar a maior mobilização dos eleitores do Brexit nas restantes regiões de Inglaterra e no País de Gales. O Reino Unido, mais uma vez, volta as costas à Europa e opta por sair da União. Só quem não se recorda dos últimos 40 anos de história pode pensar que é a primeira vez que os britânicos mostram o seu lado anti-europeu. Em 1960 fundaram a European Free Trade Association – a EFTA, juntamente com países como Portugal, Suíça, Islândia e Noruega, como resposta e entrave à então CEE. Em 1973, quando a EFTA mostrou que não servia para os intentos do reino, saiu dela e ingressou na CEE.
Questões históricas aparte, a única pergunta que passa pela cabeça de boa parte dos mais de 400 mil portugueses que moram e trabalham no Reino Unido é: “e agora?”
Joana Fildago Freitas, antiga aluna de Engenharia Automóvel no Instituto Politécnico de Leiria, trabalha na BMW/MINI, no Reino Unido e relata como foi adormecer com o Remain – Ficar na UE – e acordar com o Leave – Sair – a vencer. “Choque e muita incerteza, principalmente por não haver nenhum plano de como isto se vai processar”, explica. Com a vitória da saída, as coisas para os emigrantes podem começar a ser complicadas. “Estando eu numa companhia alemã as coisas vão ser especialmente difíceis. Se a fábrica não for rentável, não faz sentido mantê-la aqui”, conta. Com a saída, acabará também a livre transacção de bens e a UE começará a aplicação de tarifas alfandegárias nos bens produzidos em terras de Sua Majestade. O que poderá levar ao encerramento de muitas unidades de produção valiosas no Reino Unido e sua deslocalização para outros países da UE.
“No metro, hoje de manhã, as pessoas estavam muito contidas”, diz o escritor Luís Costa Pires, que mora em Londres há quase uma década. “Existe algum nervosismo geral agora, porque está tudo muito a quente, mas, na verdade, não existe nenhuma consequência imediata, além da desvalorização da libra.”
Para já, o escritor diz a “a coisa é menos negra do que se pensa” e que todos os cidadãos europeus que estão no Reino Unido poderão ficar e, no seu caso em particular, como já chegou há mais de cinco anos, tem residência permanente, não precisa de pedir nacionalidade. “Curiosamente, estava a pensar nisso, mas agora mudei de ideia, porque, obviamente, não concordo com a decisão.”
Costa Pires diz estar triste por entender que o voto pelo Ficar não tenha ganhado devido “ao medo, racismo e ignorância das pessoas das pequenas cidades e aldeias. Londres, como incrível cidade que é, votou esmagadoramente a favor do Ficar”.
A democracia também é isto
“A democracia também é isto e cada país tem o direito de decidir o seu caminho”, diz Costa Pires, adiantando que a União Europeia terá que pensar bem naquilo que é, em como funciona e, certamente, vai melhorar diversos pormenores, provavelmente ser menos interventiva. “A ideia de uma união federalista e da criação de uma espécie de Estados Unidos da Europa não funciona porque as diferenças económicas, culturais e históricas entre os povos são grandes demais e, por isso, até pode ser interessante que a UE entenda agora que o caminho deve ser ajustado.
O Reino Unido terá desafios para enfrentar, como a eventual independência da Escócia, a desvalorização da Libra, uma quebra de turismo quando a livre circulação terminar e um forte sentimento anti-britânico que vai acontecer pela Europa fora, mas são consequências da escolha que tem que ser respeitada.”
Pouca Europa e muito barulho
Ao contrário do que se poderia pensar, o referendo sobre ficar ou deixar a União Europeia, quase não tocou os temas europeus. A maior parte dos temas abordados foram de soberania interna. Falou-se muito da imigração – a maior parte dos imigrantes vêm de fora da UE e de países da Commonwealth ou da sua esfera de influência – e falou-se da manutenção do Sistema Público de Saúde, que os adeptos da saída – que até ao referendo defendia a privatização - disseram estar em perigo por imposição de Bruxelas. O que não é verdade.
Mais temas que não foram debatidos no referendo: Euro, austeridade, Tratado Orçamental, desemprego e dívida soberana. Ao contrário do que boa parte dos britânicos acreditou, o Reino Unido não assinou o Tratado Orçamental, emite a sua moeda e gere a sua dívida com políticas monetárias mais próximas das dos EUA do que da própria UE.
Sim, o Reino Unido não pertence ao euro, a moeda é a libra, que hoje, dia 24 levou o maior tombo desde os anos 50, como já se previa.
E a austeridade levada a cabo no Reino Unido foi inteiramente da responsabilidade do Governo de Sua Majestade britânica. “O problema central nas ilhas britânicas, além da existência de muita xenofobia, racismo, extremismo e ignorância dos assuntos europeus é uma coisa chamada gold plating, isto é: quando o Governo toma medidas menos populares e quando o povo reclama, alega que são imposições de Bruxelas. Quando se faz isso muito tempo, e se tenta explicar ao tal povo ignorante dos assuntos europeus que, afinal, Bruxelas não é assim tão má e que até é o garante da qualidade de vida que tem, ninguém acredita. Obviamente”, explica Nuno Sousa, funcionário da Representação Portuguesa, na Comissão Europeia.
Que implicações futuras da saída do Reino Unido? A Escócia pode a partir de hoje escolher ser independente e a Irlanda pode escolher unificar-se e, no caso da primeira, voltar à UE. Mas isto não dará ideias reforçadas de independência à Catalunha? Obviamente. Vão ser dois anos de negociações e consequências curiosas. Poderá a UE sobreviver a isto? A ver vamos, como dizia o cego.