Opinião

Uma menina bidente

21 abr 2016 00:00

Ninjas e Princesas por Ricardo Graça

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Há coisas das quais não dá para escapar: as cólicas, o romper dos dentes, a primeira pantufada com a cabeça no canto da mesa, a puberdade, a incompreensão dos pais, as dores de amor e a consequente incompatibilidade esporádica com o mundo em geral, e connosco em particular, e outras confusões com as quais a dada altura da vida todos nos cruzamos. Hoje vou-vos falar sobre uma dessas situações, felizmente no nosso caso, já estávamos preparados, há meses que tínhamos as avós, do fundo da sua sapiência, a apostar tipo totobola e agora finalmente acertaram. “Isso são os dentes”. São. São e vêm arreliados.

Vou-vos tentar traçar o panorama geral do incómodo. Durante o dia a menina é o Suárez. Com raiva. A boca dela parece estar a atravessar uma fase tramada de gengiva- -de-atleta, tal é a vontade de roçar as dentuças em tudo o que pode. Para adormecer, como não a conseguimos convencer a bochechar com aguardente, dançamos ao som de um Axl Rose a ser atropelado, seguido de um quase adormecimento que desaparece num instante com aquele decibel fininho a distorcer.

Tentamos com uma mão não deixar fugir a chupeta da boca, com a outra mão manter a fraldinha aconchegada no nariz e nos olhos para ela não se assustar com a nossa cara de pré-esgotamento, e com a outra mão ainda ritmar umas palmadinhas no rabo, tipo chocalho suave e soporífero. (Nota para quem teve o cuidado de contar o número de mãos: sim os pais às vezes tem três mãos sendo que o número indicado para ultrapassar toda esta cruzada seria de cinco).

Tudo isto entoando sempre um mantra deste gabarito: “Pronto bebé, já passou, tá tudo bem, se adormeceres ficas melhor… e eu também.” Isto, durante uma boa meia hora, todas as noites. E assim, todas as noites tenho vontade de testar a rigidez da parede com a cabeça ou de pedir aos molares, aos incisivos e aos outros da pandilha que se deixem estar sossegadinhos, para não aparecerem que nós estamos bem assim. Porque se calhar vamos assumir uma menina bidente. E meto-me a imaginar as vantagens desta solução.

A mais óbvia será o sorriso inesquecível, mas temos também a poupança no dentista, o não ter de partilhar o entrecosto com a catraia, o afastamento natural de rapazes mal-intencionados, uma alimentação essencialmente de colher, baseada em sopas, Nestum e gelados, a ausência de dor de dentes e o consequente sossego. Infelizmente não pode ser. Diz que o sofrimento faz parte da aventura, portanto aguenta-te garota, que há sempre uma dor maior a caminho.