Opinião
Josiel e os praxistas
Ano após ano as práticas de praxe vão configurando qualquer coisa muito próxima de um crime público
De Josiel é quase nada o que se sabe para além de que existe nas madrugadas da nossa Praça. E o seu nome, mesmo esse, foi obtido de assalto e surpresa a uma sua colega com quem partilha a tarefa de varrer as ruas da nossa cidade. É difícil avistar Josiel. Movimenta-se quando o dia está a despontar e os candeeiros públicos já se apagaram, enverga uma farda escura que lhe oculta as formas e usa uma gorra que impede ver-lhe o rosto.
Pela desenvoltura dos movimentos, presume-se que seja jovem. Depois, toda ela é uma simbiose com o vassourão que manobra com destreza, celeridade e atenção com que recolhe cada folha esquecida ou beata de cigarro lançada ao acaso. Varre a calçada que é de todos nós e que grosseiramente pisamos distraídos, com a minúcia e mil atenções que dedicamos a limpar o soalho brilhante de nossa casa.
Quando, pela alvorada, me cruzo com ela tenho a fantasia de desejar que um dia um empresário atento a descubra e a honre com um trabalho que requeira a responsabilidade e o empenho que demonstra numa tarefa que para outros seria desonrosa e pouco dignificante. Ocultamente penso: se tivesse posses, contratá-la-ia para trabalhar comigo, fosse no que fosse, esta senhora faria bem e com empenho.
Nas horas que antecedem a tarefa de Josiel limpar a cidade, há uma outra fauna que suja a cidade. Nestas últimas semanas, estes homúnculos, ruidosa e inconvenientemente, vestem-se de negro e, com o pretexto de cumprir uma suposta tradição académica, inundam a cidade em locais que presumem ser emblemáticos, impondo a sua crueldade atávica aos recém-chegados colegas de universidade.
Dizem que é uma forma de integrar os novos membros na Academia, mas não vão os caloiros ficar desatentos ao mundo que os espera, que o bando de energúmenos os elucida pela sua prática de praxe, a serem obedientes e servis, humilhados e desconsiderados como seres humanos, a tratarem uns fedelhos de cabeças ocas como doutores e doutoras, finalmente a perpetuarem orgulhosamente a sua condição de escravos pelo receio de ser livre e desobedecer aos incompetentes.
Ano após ano as práticas de praxe vão configurando qualquer coisa muito próxima de um crime público. À porta dos edifícios onde estão instalados os poderes locais e nacionais e que consagram o viver em democracia, um bando de imberbes grita em tom de castrato aquilo que supõe serem ordens de comando, sendo que o mais próximo que estiveram do serviço militar foi assistir a um qualquer filme enquanto ruminavam pipocas.
Mas isso não os impede de exigir que os mais jovens estejam à mercê das sevícias e torturas com que conjuram a sua cobardia. Mais além, podem-se escutar os piares galináceos com que umas fedelhas incontinentes obrigam as suas colegas a permanecerem deitadas no chão simulando os orgasmos aprendidos na escola da misoginia.
Perante este degradante espetáculo público, o silêncio das entidades públicas e de quem deveria ser garante do cumprimento dos direitos de cidadania é ensurdecedor e demonstra tibieza. Josiel poderá limpar todas as madrugadas o esterco dos praxistas, mas o seu melhor cuidado não basta para limpar o rasto de imundice desumana com que outros desiguais conspurcaram as ruas da cidade.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico do Novo Acordo Ortográfico de 1990