Opinião

O menino e o velho homem do guarda-chuva preto

4 set 2025 08:01

Havia naquela criatura algo de sinistro, de misterioso, de enigmático. No seu rosto, que poucos conseguiam ver, a cor era fria e estática

Era uma cidade daquelas que parece uma aldeia. Uma cidade onde os hábitos se repetem e as pessoas se cruzam e se cumprimentam à mesma hora e nos mesmos lugares.

Era uma cidade onde as pessoas se desviam do buraco, que teimosamente permanece no mesmo lugar, onde evitam o degrau partido, onde as estações do ano repetem plantas e flores, onde os muros marcam as mesmas fronteiras, onde as mesmas janelas se abrem ao calor ou se fecham ao frio.

Era uma daquelas cidades onde todos se conheciam… Ou não! 

Na verdade, havia, nesta cidade, um homem que todos os dias se fazia acompanhar de um guarda-chuva preto. Um homem estranho, vestido de preto, tal qual a cor do guarda-chuva. Havia naquela criatura algo de sinistro, de misterioso, de enigmático. No seu rosto, que poucos conseguiam ver, a cor era fria e estática.

Depois, o seu aspeto franzino, débil e frágil atiçava aquele sentimento de compaixão, imediatamente, esquecido face ao medo da figura invulgar e quase sobrenatural do homem. Assim que começava o dia, abria o seu guarda-chuva preto, fechava à chave a casita antiga que habitava há pouco e começava a sua rotina, cumprindo à risca o mesmo trajeto.

Primeiro, sentava-se no café do bairro, bebia o café, acompanhando-o do cigarro que retirava do casaco negro que vestia, sem praticamente falar e sem que, praticamente, para ele falassem. Assim que transpunha a porta e saía, voltava a abrir o guarda-chuva preto e, de queixo levantado, olhava para o seu interior.  Seguia, então, para a mercearia. De poucas falas, comprava o habitual milho. Abria, de novo, o seu guarda-chuva preto e, perseguido por umas aves que já o esperavam, sentava-se no costumeiro banco da praceta.

Uns bicos aflitos e rápidos aspiravam cada baguinho dourado da semente lançada sobre as pedras da calçada portuguesa que, todos os dias, aqueles sapatos pretos de verniz pisavam. Após o repasto, os pássaros faziam-lhe companhia e junto a ele ficavam até que, novamente olhando o interior do chapéu aberto, de queixo levantado, o homem partia. Chegado ao quiosque, comprava o habitual jornal e, uma vez mais, levantava o queixo para o interior do guarda-chuva preto e ia para casa. 

Um dia, uma voz pequena de criança, de olhos negros, curiosos e espertos, interpelou-o.
- Por que trazes guarda-chuva, se não está a chover?

O homem surpreendeu-se. Olhando para baixo, sorriu e a sua pele ganhou cor. 

Abriu, então, o guarda-chuva preto e uma espécie de estendal de papeis brancos, numerados e presos por pequenos elásticos, bailaram no ar.
- Esqueço-me das coisas e a minha filha numera o que devo fazer, durante o dia. Vês? 

O miúdo contemplou aquele céu de pedaços alvos, abriu a mochila e escreveu num o papel laranja: «Visitar o Lucas!»

Então, aquele lembrete, sem numeração, sem obrigatoriedade, vindo de umas mãos infantis, aliou-se ao rol de uma rotina de um velho homem que, a partir desse dia, se passeava com o mais colorido guarda-chuva preto que alguma vez existira. 

Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990