Opinião
Salvar o pai
A mundialização introduziu nesta pandemia uma velocidade de disseminação e um amplitude geográfica sem paralelo.
O vírus é um facto biológico que nos apanhou em contra pé.
A ciência e a técnica há muito que nos prometiam longevidade, capacidade ilimitada da indústria alimentar em fornecer alimentos, eficácia crescente na erradicação da doença.
A pandemia repôs a morte no nosso quotidiano. Inverteu o caminho que parecia seguro. Recolocou o homem na natureza, uma natureza perigosa.
Entrámos neste combate sob a metáfora da guerra, e, como sempre, acreditando que seria rápido o seu desfecho.
Como poderia o inimigo (externo, como convém a estas explicações fáceis) resistir por muito tempo aos meios poderosos de que dispomos?
Ou porque atingiríamos breve a imunidade de grupo, ou porque a chegada do calor interromperia a replicação do vírus, ou porque, ao dobrar da esquina, nos esperava a vacina que nos libertaria do pesadelo.
A emergência de vírus potencialmente pandémicos, de maior ou menor letalidade, é recorrente na história.
E, no arsenal das respostas antigas, lá estão as receitas de sempre: o confinamento (palavra que substituiu o velho termo de quarentena), a distância social, a higiene corporal mais frequente. Não quero, porém, cair no erro de relativizar diferenças.
A mundialização introduziu nesta pandemia uma velocidade de disseminação e um amplitude geográfica sem paralelo. Todas elas arrastaram perdas graves na vida económica, mas nenhuma provocou uma travagem tão generalizada da actividade produtiva.
A verdade é que as sociedades urbanizadas da globalização são mais vulneráveis às pandemias do que as sociedades rurais com menores índices de conexões.
Ressalvadas as situações específicas, as crises sempre se traduzem em devastações, destroem o que antes tinha sido criado.
Os vírus, factos biológicos, afinal testam a viabilidade da condição humana, o modo de vida de uma sociedade.
A pandemia expôs em ferida aberta as profundas desigualdades sociais, as disfuncionalidades dos mecanismos de redistribuição de riqueza, as fragilidades da solidariedade inter-geracional.
Detenho-me por momentos neste último revelador.
O aumento da esperança média de vida conjugado com a aceleração do tempo teve um efeito perverso: os velhos passam de época mais depressa no tempo rápido.
Encaramo-los nas pontas deste paradoxo: aplaudimos a sua capacidade de prolongar vida activa, mas viramos costas à dependência e condenamo-los frequentemente à solidão.
A solidão, o contrário do isolamento, não é uma opção.
Recordo aquela reportagem do Público, na qual, ao fim da primeira semana, se constatava que quem mais desrespeitava as imposições do estado de emergência eram as pessoas idosas.
“Não quero morrer de solidão”, dizia um dos entrevistados, vagueando numa rua citadina.
Lembram-se da história de Pinóquio? A imagem crucial da história (assim salientada por Paul Auster em Inventar a Solidão) é a de um miúdo levando às costas o pai, no meio do oceano, sob a ameaça de um tubarão.
Salvar o pai, que não sabia nadar, foi o que se auto impôs o pequeno filho do velho Gepeto.