Opinião
Letras | José Luís Peixoto (2015). "Em teu ventre." Novela OU a ficção que (re)escreve o real
José Luís Peixoto dispensa apreciações ou apresentações, desde que em 2001 lhe foi atribuído o prémio literário José Saramago com o romance "Nenhum Olhar"
A sua vida mudou depois disso: deixou de ser professor e assumiu a aventura de ‘viver da escrita’. Já bem entrado o século XXI, com todas as surpresas que nos trouxe, a obra de J. L. Peixoto não tem parado de crescer, receber prémios, ser traduzida por todo o mundo, e ter a unanimidade da crítica quanto à sua excelência e qualidade. Na revista do Expresso de 7 de maio 2021 (E|58), Luísa Mellid-Franco faz a recensão crítica do estreante Almoço de Domingo, sobre o percurso de Manuel Rui Azinhais Nabeiro, que ainda não li.
Porém, há algum tempo que me interrogava sobre a novela Em teu ventre (2015), condicionada sobre o pré-conceito(/preconceito?) de saber se corresponderia a uma encomenda de escrita. O escritor responde a isso de uma forma sintética e certeira, na “Nota do Autor” que, no final da novela, lembra os leitores de que o real e a investigação sobre ele não é senão o ponto de onde se parte para a aventura da escrita:
Este é um texto de ficção. No entanto, os dados que o compõem têm como base a informação contida nos livros Memórias I a VI, da autoria da Irmã Lúcia de Jesus, assim como as transcrições das entrevistas e outras referências do livro Era uma Senhora mais Brilhante do que o Sol, pelo Padre João de Marchi. […] (opus cit., p. 165)
A novela tem como balizas temporais 7 partes, coincidentes com os meses de Maio a Outubro de 1917, durante os quais os dias da menina Lúcia vão sendo desvendados, na sua genuína capacidade de olhar o mundo e fazer ver aos outros o milagre da esperança. De início conta com a oposição da mãe e do padre (“Os olhos da mãe não lhe dão descanso […]. Estás a ouvir? Nunca pensei que me calhasse uma vergonha destas na minha vida. O senhor prior mandou dizer que quer falar contigo. Se não me dás respeito a mim, que sou tua mãe, que te carreguei nesta barriga durante meses e meses, à custa de sofrimento que só eu sei, ao menos espero que o respeites a ele.” Opus cit., p. 38). Lúcia vê o que os outros nem suspeitam e cala o fenómeno no silêncio imposto pelo social (“Ou a água se transformou em sangue, ou a panela sempre esteve cheia de sangue. A mãe, as irmãs e a órfã não reparam. Atenta, Lúcia assiste a esse fenómeno sem o comentar” pp. 38-9).
Desde o início, e em todo o percurso da narrativa, está presente o mistério da voz da religião (/poesia?), numerado como salmos, de 1 a 18; a voz que vem entre parêntesis e cujo locutor desconhecemos, mas que bem poderia ser a de Maria a falar com o escritor e vice-versa; os discursos diretos de interrogatório (intimidação?) a Lúcia; a consciência de Maria, mãe de Lúcia; as micronarrativas das andanças diárias de Lúcia, Jacinta e Francisco; os sentimentos da populaça/multidão que se vai juntando (António Abóbora, Maria da Capelinha…); as introspeções e interrogatórios do Padre, em demanda de um real visível; até os ecos na imprensa regional; as instruções de Lúcia, que transformam o simbólico em real.
Entre tantos e tão diversos fragmentos, a novela dá ao leitor vários fios para que cada leitor possa tecer um caminho, do mais íntimo ao mais generalista. Talvez seja esse um dos possíveis entendimentos da religião ou de uma ficção que recria o real, como J. L. Peixoto escreveu no ‘salmo’ 11:
Não criei palavras que | expliquem a música | porque é no mistério | que reside a verdade. | A sabedoria mais fina é a | que distingue imagens | no invisível. | Não deixei espaços vazios, | em todos os lugares existe | alguma coisa. | Para onde quer que se | dirija o olhar, há sempre | assunto: matéria ou corpo, | esperança ou música. […] (p. 95)
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990