Opinião
Nós, as árvores
Nova estação. A mesma indiferença, a mesma resposta. E o dia vai avançando.
Caminha com alguma dificuldade, que a idade já não ajuda. Passo após passo, sem pressa; porque haveria de ter pressa? Para quê? Caminha sem olhar as pessoas com quem se cruza, sem reparar na paisagem citadina. Habituou-se à paisagem, da mesma forma que se habituara à sua própria respiração; ou ao seu cheiro.
As pessoas com quem se cruza também são, para si, uma espécie de paisagem; são como árvores: até podem ser bonitas, até podem despertar interesse ou fascínio; mas pertencem a uma espécie diferente, a um mundo diferente.
É por isso que percorre a cidade como se caminhasse numa floresta; haverá alguém que quando caminha numa floresta atenta em cada uma das árvores, como se as distinguisse?
Sabe que tem uma forma peculiar de pensar, sabe que não pode partilhar essa forma de pensar com ninguém. Também sabe que ninguém se interessa em conhecer a sua forma de pensar; ninguém faz perguntas. E gostava que fizessem.
Na sua opinião, essa é mais uma semelhança entre pessoas e árvores: não se interessam por si. Tal como acontece com o funcionário dos correios, que a olha como se fosse transparente.
Estende-lhe a encomenda que traz e pergunta qual o custo do envio. O funcionário adopta os procedimentos mecânicos que tem a fazer e responde: quinze euros e setenta. Ela recupera a encomenda, agradece e sai. Paisagem citadina. Ruas diferentes, os mesmos passos. O tempo a deslizar sem pressa nem rumo nem objectivo. É esse o propósito do tempo: passar; porque sim. Cruza-se com pessoas, cruza-se com árvores.
Pensa os mesmos pensamentos de sempre, aos quais já está habituada.
Da mesma forma que se habituou à sua própria respiração; ou ao seu cheiro; ou a estar sozinha. Pensar é uma forma de respirar; algo que faz independentemente da vontade e da consciência; algo mecânico, como os gestos de um funcionário dos correios.
Nova estação. A mesma indiferença, a mesma resposta. E o dia vai avançando.
Existem na cidade oito pontos onde se pode enviar correio. Visita-os um a um. Incluindo dois em que precisa apanhar o autocarro, onde viaja acompanhada por outras pessoas que parecem árvores.
Sempre a mesma resposta: quinze euros e setenta. Sempre a mesma indiferença. Sempre os mesmos olhares. Sempre o mesmo julgamento.
Sabe o que pensam: que é doida; que é forreta e anda a tentar encontrar algum sítio onde o envio da encomenda fique mais barato; que não tem nada para fazer e ocupa o tempo a chatear os outros.
Nunca perguntam nada. Será que as árvores não sentem curiosidade?
Desanima-a viver num tempo em que todos agem como árvores: imponentemente indiferentes ao mundo. Há muitos anos, quando trabalhava nos correios, tinha sempre uma pergunta para quem aparecia à sua frente; ou uma atenção, ou uma preocupação, ou uma opinião. E na maioria das vezes, existia uma troca de sorrisos.
Regressa aos correios com frequência porque tem saudades de sorrir. Habituou-se a tudo, excepto à ausência de sorrisos. Mas vive num tempo em que as árvores não sorriem.