Opinião
What happened?
Disse aos gémeos que sempre tivera o sonho de ir à televisão e eles não riram; abraçou-os com força.
Sempre teve o sonho de ir à televisão. Desde a noite em que toda a aldeia se reunira para assistir à inauguração do aparelho que o Tito do café comprara a prestações.
Todos juntos perante aquele milagre da tecnologia, prontos para serem arrebatados por aquela novidade; e foi ali, no meio de toda aquela gente impressionada e ávida de emoção, que sentiu estar perante algo que lhe proporcionaria uma janela de sonho.
Festival da canção de 1966, Madalena Iglésias a cantar Ele e Ela. Foi o que mais a impressionou.
A Iglésias era tão bonita, tinha uma expressividade que a encantou; cantava tão lindo; sorria como uma deusa. Era única. Parecia livre.
Nessa noite de insónia pensou que possivelmente aquela artista seria uma mulher normal, como todas as outras mulheres; excepto quando estava na televisão: transfigurava-se naquele ser belo e hipnotizante.
Na manhã seguinte foi perguntar ao Tito do café se a deixava trabalhar lá.
Ele demorou seis meses a dizer que sim; um ano depois, atribuiu-lhe a responsabilidade de ligar e desligar o aparelho televisivo (como ele lhe chamava).
Sentiu-se poderosa, era como se tivesse o poder de ligar e desligar sonhos.
Pensava nas pessoas que via na televisão. Sabia que eram feitas de carne e medo, tal com as outras pessoas; contudo, a televisão dava-lhes vida nova, um outro sentido e propósito. Dava-lhes individualidade.
Não as invejava, mas sonhava com a possibilidade de partilhar aquele mundo durante uns momentos; respirar o mesmo ar, sentir a mesma alegria; estar do lado de lá. Ser única. Mas os dias apenas lhe traziam mais repetições de realidade.
Sucederam-se os festivais da canção, Simone e Tordo, casou com o filho mais novo do Tito, Carlos do Carmo enterneceu-a e logo depois nasceram os gémeos, teve uma televisão nova só para si, veio o Paião que a encantou e a seguir morreu.
Deixou o café e continuou a sonhar.
Por vezes, ria com muita vontade. Outras vezes, chorava com desespero.
Deixou de seguir o festival da canção e começou a ver novelas, onde as pessoas também riam e choravam; onde as pessoas tinham pequenos-almoços maravilhosos.
Adorava os pequenos-almoços das novelas.
Disse aos gémeos que sempre tivera o sonho de ir à televisão e eles não riram; abraçou-os com força.
Percebiam a importância do sonho, e isso deixou-a alegre.
Os dias passavam vagarosos. E de repente percebeu que não eram os dias que estavam a passar; eram os anos.
Lembrava-se da Iglésias e sorria com tristeza. Para onde vai o tempo? Para que servem os sonhos? Porque nunca tinha pequenos-almoços maravilhosos?
“What happened to Madalena Iglésias?”
Até as pessoas da televisão se perdem no tempo, até para elas a janela se fecha.
Os anos continuaram a passar; e pareciam dias.
Por vezes, os gémeos falavam em levá-la ao “Preço certo”. Mas a intenção nunca se concretizava; podia olhar através das janelas, mas não conseguia transpô-las.
Era o que diria à Iglésias, se um dia tomasse um pequeno-almoço com ela: estamos presas do lado de cá das janelas.