Viver

“Detesto pessoas de complicómetro em riste”

21 jul 2024 15:00

Rebeca Garcia Fernandes, ceramista

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Já não há paciência... para pessoas que escreveriam esse há, sem ‘h’. Não se entende como é que pessoas com a dentição definitiva completa, e muitos já com direito a alguns dentes desvitalizados, ainda tenham dificuldades com isto.

Detesto... pessoas de complicómetro em riste. Pouca plasticidade, pouco investimento no desenrascanço. A nuvem é tão densa que chove nos outros. A ideia... é continuar a ser inconveniente e até beligerante sempre que se trate de questões de igualdade de género. Nas grandes questões e nas subtilezas também.

Questiono-me se... é suposto continuarmos a acreditar que conseguimos levar todas as dimensões da vida na máxima excelência. Alimentação equilibrada e treino quatro vezes por semana, estar presente para os filhos e conseguir fingir que somos uma cenoura sem revirar os olhos, vestir a camisola no trabalho e não faltar nem que estejamos a arder em febre. Estar lá para os amigos, nas festas e nas amarguras. Ser uma boa companheira, das que aplaude as vitórias e pergunta como foi o dia, ir à terapia para saber pôr limites sem me sentir culpada. É uma canseira.

Adoro... dias de Verão. Quando a noite vem muito tarde, o sol não se cansa de aquecer demasiado e os mergulhos são redentores indispensáveis. Por mim era sempre Verão e fico mesmo desgostosa com o Inverno. As golas altas, a ponta do nariz com uma estalactite, a chuva que bate de lado, são tudo coisas que me agastam profundamente.

Lembro-me tantas vezes... dos post it que a minha mãe deixava assinados pela frigideira: “Não gosto que me uses com objectos metálicos, se usares colheres de madeira não fico toda riscada”. De alguma maneira ela achou que eu ouviria a frigideira mais facilmente do que a ouviria a ela.

Desejo secretamente... trabalhar sem me preocupar com dinheiro. É que eu adoro trabalhar, eu seria ceramista à mesma! Mas a um ritmo mais saudável e com menos ansiedade. Não sei porque se diz que o dinheiro não traz felicidade, consigo ver-me muito feliz a fazer a vida com milhões sempre disponíveis.

Tenho saudades... do Alentejo com o avô Manel, os dois sentados debaixo do chaparro grande a descascar amêndoa. Ele a recitar poesia sem nunca se atabalhoar nos versos, ainda que o cigarro de enrolar estivesse sempre pendurado nos lábios. Ele conseguia outras coisas impossíveis: chamava-me “carinha de lua cheia” com tanto carinho que nunca suspeitei que era bochechuda.

O medo que tive... quando percebi que para vingar neste mundo era essencial ter a lateralidade bem definida. Era então expectável que perante os comandos de alguém que diz: “aqui, à esquerda”, o cérebro do receptor do comando entendesse onde a esquerda era em menos de dois nanossegundos. A vida é um pouco mais difícil para mim e acredito que extremamente frustrante para quem vá comigo no carro a indicar o caminho.

Sinto vergonha alheia... de pessoas que têm pouca noção onde elas acabam e os outros começam, fazendo com que joelhadas e encontrões estejam sempre iminentes.

O futuro... parece promissor ainda que eu possa estar a falar de uma amostra muito reduzida que é a minha bolha. Mas se não for para acreditar que vamos todos evoluir para seres com menos vontade de deixar tudo em cinzas, então para quê tentar?

Se eu encontrar... os chapéus de chuva todos que já perdi sou capaz de fazer uma tenda com envergadura suficiente para envergonhar os senhores da Quechua.

Prometo... não me esquecer de pôr camadas absurdas de protector solar nas sardas para não acabar o Verão com o que parecem ser extensos salpicos de lama na cara.

Tenho orgulho... da minha filha que metade das vezes parece um camião desgovernado, tal é a fúria de viver, mas que foi bafejada com uma empatia e sentido de justiça tão grande, que vê-la em situações onde essas qualidades brotam é um tónico revigorador.